Resultado do primeiro julgamento de Doca Street, o assassino de Ângela Diniz, gerou protestos em todo o país e impulsionou movimento feminista
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Mais de 40 anos para impedir o uso de uma tese cruel, patriarcal, misógena, de ódio contra as mulheres: a legítima defesa da honra.

No início de agosto, o Supremo Tribunal Federal declarou que é inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres, ou seja, aqueles julgados pelo tribunal do júri.

A decisão foi unânime. A tese foi usada por décadas pra justificar o comportamento de homens assassinos, mas não estava na lei. Com a decisão histórica do STF ficou no passado, um passado triste e vergonhoso a ideia de que o comportamento de uma mulher pode justificar a morte dela.

A decisão do Supremo é um forte posicionamento da justiça brasileira contra uma ideia resistente na nossa sociedade a respeito das mulheres e do que é esperado da postura delas. O que o STF afirmou, é que o uso da tese da legítima defesa da honra contraria os princípios da dignidade humana, da proteção a vida e da igualdade de gênero. Passou a ser inválido o argumento que o crime ou a agressão são aceitáveis quando a conduta da vítima, supostamente, estivesse atingindo a honra do agressor. A partir de agora a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo não podem mais usar esse argumento em nenhuma fase do processo e nem no julgamento.

Conversando com meu amigo professor doutor em Direito Penal, o advogado criminalista e presidente da Associação da Advocacia Criminal secção Paraíba (ANACRIM-PB), Romulo Palitot, ele me disse que o princípio da defesa da honra não estava na Lei, que foi uma criação, uma interpretação.

É importante entender o que é a legitima defesa. O nosso Código Penal foi criado em 1940 e prevê algumas circunstâncias que afastam de punição pela prática do delito, e uma delas é a legítima defesa. O artigo 25 do CP apresenta os requisitos para que esse argumento seja devidamente aplicado. Existem algumas características para legítima defesa.

No Brasil, essa vergonha começou em 1976, quando Raul Fernando do Amaral Street matou com quatro tiros no rosto a socialite Ângela Diniz, que era, então, uma das mulheres mais conhecidas e cobiçadas da época. Nesse caso famoso, no qual a tese da legítima defesa da honra foi usada em júri, os advogados de defesa usaram o ciúme como argumento para justificar o crime cometido em “defesa da honra”.

Para você entender melhor o caso Doca Street : Ângela Diniz foi assassinada com quatro tiros numa casa na Praia dos Ossos, em Búzios, por seu então namorado Doca Street, réu confesso. Mas, nos três anos que se passaram entre o crime e o julgamento, algo estranho aconteceu. Doca tornou-se a vítima. Escute um podcast original da Rádio Novelo chamado ‘Praia dos Ossos’ que entenderás melhor.

Esse foi um dois casos mais emblemáticos que argumento da legítima defesa da honra foi utilizado, só que nunca esteve dentro do parâmetro do que é previsto lá no artigo 25 da lei. Isso vem da construção das normas e do conceito do papel da mulher dentro da sociedade. A justiça acatar um argumento como esse é o mesmo que está colocando a mulher numa posição de propriedade.

Nos mais de 30 anos na prática do jornalismo ora no rádio, ora na TV, cansei de noticiar manchetes tipo: homem mata mulher na frente dos filhos, e a justificativa que foi utilizada por mais de 40 anos no Tribunal do Júri, extrapolando o princípio, é que ela traiu, estava passando dos limites, tinha outro namorado sem ter divorciado, e por aí vai. Em suma, é que na verdade essa maldita tese sustentava o pensamento machista de que a mulher é propriedade do ex-marido, portanto ela só pode fazer aquilo que ele permitir, ela não poderia ter mantido um outro relacionamento antes do divórcio ter saído e por isso a pena dela por essa “infração” foi a morte.

É importante quebrar esses argumentos para também romper o ciclo da violência. Como retrata um dos livros mais vendidos de Zíbia Gasparetto, Ninguém é de Ninguém, as pessoas precisam entender que a mulher tem autonomia para poder acabar com os relacionamentos.

Na conversa com a jornalista Vera Morgado, na rádio Câmara de Brasília, Cristiane Damasceno destacou, no tocante ao arcabouço jurídico, a grande questão está na interpretação das leis e que por isso o Conselho Nacional de Justiça editou a resolução 492, em 17 de março de 2023, que traz uma instrução para os juízes e juízas sobre a interpretação sobre perspectiva de gênero. Porque a regra tá lá posta, mas na hora de interpretar não se coloca as lentes sob a perspectiva de gênero. Um exemplo citado foi de um caso claro da área de família:

– A mulher sai de casa e deixa as crianças com o pai (essa é a ideia passada para a justiça). Só que quando vai se saber da história, ela fez isso porque tá passando por um processo grave de violência. Só que o juiz vai lá no caso concreto e diz que infelizmente ela abandonou os filhos e que por isso a guarda tem que ficar com o pai. Se antes de dar a  sentença, questionar por que essa mulher saiu de casa? Por que ela fugiu? Qual o contexto do relacionamento? Para poder chegar a conclusão enquanto julgador ou julgadora para quem vai a guarda.

Moral da história. Só a Lei não basta, a questão é sua aplicação. O tempo histórico foi bastante longo, mas chega de culpar as vítimas. Enfim, uma luta que durou mais de 40 anos… sigamos atentas e fortes!