No dia 26 de setembro de 1969, o LP de Abbey Road foi disponibilizado para o mundo inteiro, trazendo consigo não somente a capa que se tornaria a mais icônica (e homenageada) de toda a discografia d’os Beatles, mas também as 17 últimas músicas inéditas gravadas conjuntamente por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr enquanto integrantes do quarteto de Liverpool. Por mais que o álbum Let It Be (de maio de 1970) tenha sido lançado depois, ele foi composto por gravações um pouco mais antigas que não refletiam tanto o clima rachado que predominava nos meses derradeiros do grupo (a única exceção é a faixa I Me Mine, que foi gravada em 1970, já com a banda em formato de trio).
Os conflitos internos entre os Beatles vinham de mal a pior desde a morte do empresário Brian Epstein (ocorrida em 1967, devido a uma overdose acidental). Sem ele, John, Paul, George e Ringo ficaram órfãos de uma figura fraterna que sabia cuidar muito bem dos inconvenientes administrativos e ainda exercia, muitas vezes, o papel de agente pacificador nas discussões acaloradas entre eles. Os bastidores dos álbuns The Beatles (gravado ao longo de 1968) e Let It Be (gravado, quase que totalmente, em janeiro de 1969) já haviam sido bem conturbados, mas o processo de concepção de Abbey Road (ocorrido de fevereiro a agosto de 1969) foi, com certeza, o mais turbulento da discografia do Fab Four.
O clima estava tão ruim que, em março de 1969, Paul se casou com Linda Eastman sem a presença de qualquer um dos demais Beatles na cerimônia. Além disso, todas as 14 faixas de Abbey Road creditadas à dupla Lennon/McCartney foram feitas por um sem a companhia do outro: desde o início da banda, John e Paul sempre escreveram várias canções sozinhos, mas essa foi a primeira vez que um disco d’os Beatles não incluiu nenhuma música feita conjuntamente pelos dois – isso porque, na época da produção/gravação do LP, a relação entre a dupla já estava tensa e a ponto de implodir: Paul se incomodava com a vontade de John em ter Yoko Ono presente em todas as reuniões da banda, enquanto John (tal como George) vinha se frustrando com várias decisões criativas/executivas de Paul (principalmente com vetos do parceiro a várias de suas ideias) e, com isso, percebeu que teria uma liberdade operacional muito maior em carreira solo (coisa que ele começou a ‘’ensaiar’’ quando lançou sozinho o single Give Peace a Chance, em julho daquele mesmo ano).
Quando Abbey Road chegou às lojas, John já havia deixado os Beatles há 6 dias. Porém, os quatro músicos não deixaram essa informação vazar para a imprensa e só anunciaram o fim definitivo do grupo em abril de 1970 – quando Paul percebeu que o seu ex-parceiro não retornaria à banda e, então, chegou à conclusão de que seria impossível continuar sem ele.
Durante os poucos meses que antecederam o fim d’os Beatles, o lançamento de Abbey Road passou ao público a falsa impressão de que tudo andava bem dentro da banda. Afinal, o encarte dizia que Lennon e McCartney ainda estavam escrevendo bastante juntos, o repertório inédito era fantástico e todos os quatro integrantes haviam ganhado espaço para contribuir com composições próprias para o disco (até mesmo Ringo, que quase nunca compunha, assinou como autor único, na divertida Octopus Garden). Contudo, apesar disso, o ambiente interno do grupo passava longe de ser 100% democrático.
Neste álbum, Paul foi o responsável pela criação das faixas Oh! Darling, Maxwell Silver Hammer, You Never Give Me Your Money, She Came In Through The Bathroom Window, Golden Slumbers, Carry That Weight , The End e Her Majesty, enquanto John entregou Come Together, I Want You (She’s So Heavy), Because, Sun King, Polythene Pam e Mean Mr.Mustard. Porém, por mais que as contribuições dos dois autores principais da banda tenham sido espetaculares, o maior destaque do disco foi, para muitos, a surpreendente evolução de George Harrison como compositor: em trabalhos anteriores da banda, o então ‘’Beatle quieto’’ já havia entregado músicas excelentes como While My Guitar Gently Weeps e Taxman, mas, em Abbey Road, ele impressionou a todos com as obras-primas Something e Here Comes The Sun – que foram descritas por diversos críticos como ‘’as melhores faixas do LP’’ e provaram que, depois de anos vivendo na sombra de Paul e John, George havia, enfim, se tornado um compositor à altura dos dois.
A existência de um terceiro compositor genial no grupo foi percebida por Paul e John pouco antes das gravações do álbum, mas não foi bem-recebida… pelo contrário, gerou disputas de egos, boicotes e competições por espaço nos discos da banda. George teve duas de suas músicas inclusas em Abbey Road, mas poderia ter tido bem mais: na época das gravações do LP, ele estava escrevendo incessantemente e teve composições sensacionais como All Things Must Pass, Wah-Wah e Isn’t It a Pity negadas pela dupla principal. Durante uma entrevista concedida anos depois à revista Rolling Stone, George declarou o seguinte: ‘’Quando Paul e John finalmente aceitavam tocar alguma das minhas músicas era maravilhoso, mas eu tinha que tocar 59 músicas criadas por eles antes d’eles, pelo menos, aceitarem ouvir uma minha’’.
Com tudo o que foi revelado para a imprensa após o fim d’os Beatles, ficou claro que Abbey Road já era o reflexo de uma banda onde os egos individuais estavam falando mais alto do que o trabalho coletivo. Porém, apesar de todos os problemas citados, John, Paul, George e Ringo não haviam perdido a capacidade de contribuir positivamente na obra um do outro: mesmo com a hierarquia desigual que existia no grupo, o fato é que, se qualquer um dos quatro integrantes tivesse ficado de fora, o álbum não seria tão majestoso quanto é. Ao longo das 17 faixas, todos os membros do quarteto contribuíram em algum momento, não apenas com composições próprias, mas também com arranjos instrumentais e vocais de apoio em canções alheias.
A mágica que acontecia quando o Fab Four trabalhava em equipe era inimitável e, em Abbey Road, a maior prova disso é a sequência de encerramento formada pelas faixas You Never Give Me Your Money, Sun King, Mean Mr. Mustard, Polythene Pam, She Came In Through The Bathroom Window, Golden Slumbers, Carry That Weight e The End (nessa ordem): essas músicas curtas compostas alternadamente por Paul e John jamais teriam se tornado tão grandiosas se tivessem sido lançadas isoladamente, mas Paul decidiu agrupá-las, formando assim um medley épico e genial de 16 minutos. George, por sua vez, foi quem sugeriu a presença de um solo de guitarra em The End (que foi executado pelos três guitarristas da banda, após um palpite de John), enquanto Ringo deu a ideia de incluir o icônico solo de bateria da música.
De maneira quase que profética, a última canção que os quatro Beatles gravaram juntos acabou sendo a intitulada The End. Foi um final digno não apenas para Abbey Road, mas também para a trajetória da maior banda de todos os tempos. Porém, é inevitável sentir uma certa tristeza ao lembrar que, por trás de um álbum simplesmente perfeito, havia um grupo com tantos problemas internos.