Magshopping – João Pessoa – PB - Acervo pessoal do autor

Eu me lembro, nos anos 70, do êxtase na descoberta das vendas, bodegas e mercearias do bairro. As formas, cores e cheiros dos objetos eram arrebatadores. Pareciam ter vida própria; entravam nos nossos sonhos instigando o fetiche do consumo. A segunda experiência extática foi a visão da escada rolante na loja Viana Leal, em Recife. E em João Pessoa, na loja de vanguarda, a “Quatro e Quatrocentos”, depois LOBRÁS e 4.400 outra vez. Era como saltar do cenário dos Flintstones ao mundo futurista de Os Jetsons. E o rádio reinava supremo naquele ambiente moderno da pré-televisão. Nossos ouvidos eram bem servidos. Pelas ondas do rádio vieram as vozes do mundo e a astúcia da publicidade, a propaganda embalada em melodia sedutora. Depois veio a TV em preto e branco prometendo mundos e fundos, e nós imersos na série Perdidos no Espaço.

Foi assim a primeira vez, a relação com o “sexy-appeal dos objetos”, contato imediato com os “paraísos artificiais” e presságios do virtual.

Uma das mudanças sensíveis no circuito do mercado, cultura e lazer ocorreu com a invenção do shopping center. Passamos a habitar o mundo do comércio como se fosse um templo. Mas é uma zona pagã, que oferece prazer, satisfação, conforto, segurança, breve instante de felicidade. Ali reina Hermes, o espírito do negociante, promete tudo. Como o diabo, na lenda de Fausto (Mefistófeles), promete a fortuna, o amor, a beleza, a juventude eterna. Simulacro perverso da (ir)realização, desde Freud e Marx, puro fetiche da mercadoria. “Complexo de Denorex”: a falsa valoração daquilo que parece mais não é.

No shopping reina o deus dinheiro (sócio do inominável), reverenciado pois confere poder a quem o possui. Mas há sempre um “pacto simbólico” entre o cliente e o comerciante, ambos cúmplices no contrato diabólico. O cliente deverá pagar um preço pelas suas aquisições, e é aí que entra o Mefisto oferecendo cartão de crédito “gratuitamente”.

Vitrines, espelhos, luzes que piscam, há um ilusionismo visual fatal na mise em scène do shopping. Não háempoderamento apenas simulação, uma embalagem mentirosa que se vende, esta é a regra no mundo da aparência, a imagem vale ouro nesse mercado. As pessoas enlouquecem tentando modelar uma imagem de si que seja bem aceita, reconhecida, gratificada. Este é um sintoma da cultura do hiperconsumo. O grotesco filme A substância(com Demi Moore) mostra o preço a pagar por embarcar no truque de marketing oferecendo a beleza e eterna juventude. Uma aula sobre o ego, a ilusão e as feridas narcísicas que mandam Dorian Gray para o jardim da infância. Precisamos discutir o consumo.

Relembro Oscar Wilde que descreve a América (país inventor do shopping center), como a única nação que foi da barbárie à decadência sem passar pela civilização.

Recordo igualmente as teses apocalípticas de Baudrillard, sobre o shopping center no livro Sociedade de Consumo (1970), os livros pessimistas de Lipovetsky, A Era do Vazio (1983), O Império do Efêmero (1987) e A sociedade da sedução – democracia e narcisismo na hipermodernidade liberal (2019), e o liquidificador de Bauman, Vida para Consumoa transformação da pessoa em mercadoria (2008). Reclamam do desmanche das solidariedades humanas, da falta de calor humano, do “vivo do sujeito”, e criticam, com propriedade, a exclusão dos “sem poder aquisitivo”.

Há sempre o outro lado da moeda

À primeira vista o shopping center seria o suprassumo da alienação, a vida engolida pela compulsão do consumo, delírio da sociedade do espetáculo, signo do narcisismo exacerbado e usurpação perversa da natureza; o efeito de uma regressão cultural. Mas não existe nada feito somente de malefícios e infortúnios, há sempre a parte de sorte, chance e oportunidade. As “ilusões necessárias” existem para que a realidade não nos sufoque.

As feiras, mercados, lugares de trocas – e hoje o shopping – são bons condutores de ideias, notícias e novidades, onde fervilham pessoas, transeuntes, clientes, viajantes, narradores de histórias com oferendas de benefícios, enfim lugar onde sempre ocorre algo que interessa aos humanos; como portal aberto cheio de ocasiões e oportunidades.

Na urbe em crescimento, habitam os espíritos do homo faber (vocacionado para a produção e consumo), o homo sapiens (ávido pela compreensão do mundo) e o homo ludens (epicurista orientado para o princípio do prazer, o jogo, a festa, os deleites mundanos). O consórcio dessasentidades faz do shopping um centro nervoso e profusor de sonhos, desejos e expectativas, que penetram fundo no imaginário social.

O sociólogo Michel Maffesoli, no livro “O Tempo das Tribos – O declínio do individualismo na sociedade contemporânea” (1988), mostra que nessa complexidade persiste o culto da “socialidade”, o rito da “proxemia”, a realização dos laços afetivos no mundo sensorial, o gozo na experiência de “estar-junto” mesmo provisoriamente.

Logo, existe agregação e gozo interativo nas trocas simbólicas, apesar das pressões do “esquizocapitalismo. Relembro a tese “Shopping Centers: ilhas da pós-modernidade. Comunicação na era pós-moderna” (Ricardo Freitas 1996), etnografia criteriosa do shopping center (que, nos anos 90, antecipou um presságio para o próximo milênio).

Ele defende a positividade na experiência de habitaro shopping, uma vez que os atores sociais extraem dali uma dimensão de prazer, que confere sentido às suas existências. Isto não extingue o fato de que o shopping é um emblema do imperialismo, mas há ali uma instância que extrapola a mera dimensão do consumo, despesa, futilidade e desperdício.

Walter Benjamin já alertava para a presença dos outsiders, poetas, desviantes no circuito capitalista do século XIX. O flâneur (o andarilho), o dândi, o colecionador, figuras da cidade-luz, que possuem uma aura de originalidade. São virtuosos, estetas, seletivos, de gosto e paladar refinado, que perambulam vagabundos pelas “galerias de Paris” (que corresponderiam hoje ao shopping) sem se contaminar com o vírus do consumo de massa.

O mito e o rito das tribos no shopping center

No espaço aparentemente inóspito, inodoro e insípido do shopping, os seus visitantes (muitos deles turistas), com espírito desbravador, degustam visões, sabores e aromas que lhes arrebatam os sentidos. Agrupam-se por interesses, pactos e conveniências.

Na cartografia do shopping se espalham as várias tribos: as crianças em algazarra que se deleitam com os doces, guloseimas e brinquedos, os teens que se regozijam nos jogos eletrônicos, barzinhos, encontros afetivos, os estudantes que fogem das aulas e se reúnem na praça da alimentação para namorar, os cinéfilos caçadores de relíquias que driblam as máquinas mortíferas de Hollywood, os fisiculturistas, a turma da malhação na academia de ginástica, buscam saúde e beleza corporal, as tribos dos outsiders, rebeldes pós-modernos, com percings, tatuagens, indumentárias góticas, as tribos gays em meio às grifes, dentes e músculos encontram ali um lugar seguro para transitar, e os idosos se organizam em grupos com outros corações veteranos, relembram proezas remotas, jogam cartas e conversas fora, nos cafés, bares e restaurantes. Ali se agita uma fauna urbana diversificada, astribos se estabelecem, demarcam territórios e esquecem a tirania do tempo.

O shopping é o lócus privilegiado da conexão, mas também da vigilância pois há câmeras de segurança por todos os lados. Os transeuntes sabem que estão sendo observados e interiorizam tal vigilância; este é o efeito do “panóptico” (o olho que tudo vê), formulado por Michel Foucault que explica os modos de controle e vigilância. Também há códigos que permitem os “shoppistas” sinalizarem uns aos outros seus gostos, regras e preferências.

Entretanto, a contradição do shopping center é a parte excluída da sociedade, os pobres, mas eles sempre encontram suas vias de acesso. O exemplo mais notório é o do “rolezinho”, em que jovens, estudantes, ociosos, em bandos se deslocam e invadem o templo do consumo: sem o objetivo de comprar nada, essa tribo deseja apenas se enturmar, se agrupar pacificamente; mas às vezes as coisas fogem ao controle e a violência explode. Este foi o caso de um rolezinho no shopping Tambiá, em João Pessoa, em 2013.

A alegria do rolezinho e o medo do camburão

O rolezinho no shopping significa a efervescência e o vigor juvenil ocupando os espaços estéreis do consumo, mas a invasão dos “bandos subalternos” no terreiro da classe média, nem sempre acaba bem. Basta um furto, briga, violência já é um sinal para os seguranças reagirem. No caso do shopping Tambiá (2013), houve transgressão dos jovens e truculência policial, depois houve protestos dos estudantes que viraram notícia nos jornais. Depois dos ânimos acalmados, as tribos ali retornam e fazem um novo rolezinho, assim há os ciclos de guerra e paz até o próximo round.

Há uma imagem perturbadora, no cabeçalho deste texto, flagrada por acaso e que captura a insólita vizinhança entre uma livraria e uma loja de armas esportivas, cujo slogan publicitário é curioso: “Desperte o guerreiro dentro de você e se prepare para a batalha conosco!” Tudo brincadeira, mas... Sabe-se que a aquisição de armas se elevou durante a gestão presidencial do capitão, aquele que se diz “treinado para matar”. E essa semana, o Brasil acordou com a notícia no primeiro homem-bomba que se explodiu em Brasília, na Praça dos Três Poderes, querendo cancelar o STF, e por um triz o golpe não deu certo.

O insólito da imagem consiste na estranha proximidade entre a loja de armamentos (signo da guerra) com a livraria (signo da paz), lugar privilegiado de leitura, fonte de saberes, exercício da imaginação sonhadora. Então, o shopping center, em seu paradoxo de harmonia, de um lado e da paz armada, de outro, repete as contradições do mundoreal” dividido entre o vigor da “pulsão de vida” e o temor da“pulsão de morte”. Fico pensando.

 



Por Claudio Cardoso de Paiva