Há alguns anos, tomei contato com a obra de um músico, compositor, cantor, exímio pianista, que vem, felizmente, galgando mais e mais degraus nesta difícil seara da MPB: Zé Manoel, nascido em Petrolina (PE).

E faço, neste texto, considerações baseadas na minha emoção, percepção, após escutar, muitas e muitas vezes, seu novo álbum: Coral. Não será a opinião de um especialista, mas de alguém tocado por um trabalho artístico de qualidade.

Zé Manoel foi chegando na música brasileira sem alarde, com passos leves, mas firmes e embasados no barro do chão do talento genuíno. Teve composições acolhidas por grandes vozes da nossa música, como Elba Ramalho, Fafá de Belém, Juçara Marçal, Ná Ozzetti, Célia, Ana Carolina entre outras.

É extremamente criterioso em tudo que lança. Nota-se um cuidado extremo, um refinamento paciente e exato, a expressão de uma alma delicada que não suportaria barbárie e desonestidade.

Tem alguns álbuns gravados, um deles indicado ao Grammy latino de melhor álbum de música popular brasileira, em 2021: “Do Meu Coração Nu”. Já é pouco usual, na arte que o Nordeste exportou para o Brasil e o mundo, que seu instrumento de trabalho não seja o violão ou a sanfona, mas o piano. Piano que acompanhou Maria Bethânia nas músicas de seu álbum mais recente, Noturno. Poderia haver maior confirmação de talento do que essa?

O canto de Zé Manoel é suave, acolhedor como um banho de cacimba ao entardecer, uma caipirinha de caju ou uma mariola de goiaba. Vai nos conquistando pelo que retira de excesso, para nos entregar a mais pura seiva do cantar nordestino.

No álbum Coral, Zé nos conduz a lugares majestosos, conseguindo soar grandiloquente e discreto ao mesmo tempo. A primeira música, cantada em inglês, é ouro puro – parceria com Gabriela Riley. O que se descortina, nas demais canções, é uma mistura de diferentes estilos musicais e tradições culturais, que resulta numa sonoridade única e universal.

Escuto ecos de tantas vertentes! Percebo uma viagem aos anos setenta: na ambientação sonora, nas abordagens instrumentais escolhidas, nos longos trechos não cantados, na alma soul, lembrando o Native dancer, de Wayne Shorter e Milton Nascimento. Mas, sem jamais parecer nostálgico ou datado. É fresco e renovador. Traz alento para tempos tão superficiais e de memórias tão fugazes.

Realça a sua condição de homem negro, num país que jamais aboliu o racismo e no qual a cor da pele pode virar sentença de morte. Sua poética consegue ser contundente e amorosa, como um rio que, embora se desvele em beleza, leva-nos pelos veios sinuosos das verdades mais pungentes.

Essa impressão é corroborada ao ouvir sua homenagem sublime, tocante, para uma voz pouco lembrada, criadora da bossa nova e grande expoente da MPB, invisibilizada por sua condição de mistério e dissonância, que escolheu São Paulo para viver, ao invés das “brancas” areias cariocas: Johnny Alf – gay, pianista, negro, à margem. “Silêncio! Agora o peito vai falar” – alerta-nos Zé Manoel. E como fala!

Chegam-nos mais vozes ancestrais, com os batuques de Alessandra Leão, a majestade de Luedji Luna, a conexão espiritual com os deuses d’África. É de lá que vem sua inspiração. Ali estamos, levantando poeira no terreiro: balançando as fitas azuis e encarnadas dos pastoris, dançando coco, forró, lundu, cantando lamentos e aboios. Tudo isso se condensa na música criada por Zé, numa atmosfera em que o jazz tudo envolve, num tributo redobrado ao continente africano, aos pés e mãos que fundaram o mundo.

Aí, a voz que perdeu o medo de se mostrar, que se revela segura, amadurecida. E, acima de tudo, delicada. Terna. É o triunfo da suavidade! Que também encontramos em Ayrton Montarroyos e Artur Nogueira, contemporâneos e amigos de Zé Manoel: artistas multifacetados, inteligentes, competentes, íntegros, uma tríade que nos remete aos geniais Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

A canção Coral, que dá nome ao álbum, é outro diamante que começa com uma introdução quase camerística. A gente fica sem respirar, de tanta beleza. A saudade cantada por uma voz poética que não se deixa aprisionar pela chuva de pedras da metrópole. O sertão é (mais) adentro.

Outra surpresa é “Siriri sirirá”, canção de Onildo Almeida, gravada pela inesquecível Marinês, a rainha do xaxado, pernambucana criada e moldada em Campina Grande (PB), que Zé atualiza e relê – antropofagicamente: “roubaram meu amor e me deixaram sem amar; eu agora arranjei outro e quero ver você tomar”.

Zé Manoel é nordestino como eu, morador de São Paulo como eu, homem preto, migrante, como eu. Eu o encontro casualmente numa festa de rua, e pergunto se o tema veio da música gravada por ela, e ele me confirma: “quis homenagear Marinês, porque tenho uma conexão forte com a Paraíba, assim como ela”.  Além da beleza da nova letra, juntada ao trecho da versão original de Marinês, que piano soberbo encerra esta última canção do álbum, parecendo unir Luiz Gonzaga e Thelonius Monk! Eu, que estudo (e canto) a obra de Marinês há muitos anos, fico envaidecido em nome de todos os fãs paraibanos.

Sim, já esbarrei com Zé em shows, mas também nas ruas de Sampa. Porque ele segue livre, simples, agora já reconhecido por muitos fãs que o vem abraçar. E sempre com um sorriso calmo, uma atitude de acolhimento, sem nenhum deslumbre ou estrelismo.

Isso é a verdadeira elegância. Voz, piano, composições, personalidade: Zé é assim, um príncipe do povo, que merece, e precisa, alcançar o Brasil (e o mundo) inteiro.



Por Renan Barbosa - Cantor e compositor