Eu vi um Judas que se enforcou de verdade. Andava cheio de débitos, já tinha planos de cometer suicídio e aproveitou-se do seu papel na Paixão de Cristo. Na famosa cena do enforcamento, todos se emocionaram e bateram palmas para ele, e teve alguém que comentou na plateia:

– Esse cara é muito bom, parece até de verdade!

Aquele Judas, assim como o outro, perdeu sua vida por 30 dinheiros… Claro, ele estava devendo a Deus e ao mundo!

Eu vi um Herodes que saiu de cena porque desconfiou da mulher. Jesus Cristo entrou e ficou esperando, os atores aguardavam em silêncio e o público se perguntava, inquieto, por que a razão de tanta demora. O diretor deixou a cabine de som, teve que rodear a quadra de esportes para procurar o ator nos bastidores. Não o encontrou. Herodoes tinha mesmo fugido. No dia seguinte, confidenciou a um amigo que foi causa da esposa. Ele não a viu na plateia – e como já andava com suspeitas dela, e em vias de separação, pensou que a pobrezinha estivesse traindo-o.

E teve um Jesus Cristo que prendeu Pôncio Pilatos por desacato à autoridade. Quem fazia o papel de Jesus era o delegado da cidade; e o delegado era um déspota, era vaidoso também, e só permitiu que fizessem a peça porque lhe deram o papel do Cristo. Pilatos ficou para um zé-ninguém, um pobre-diabo da periferia que vivia de folgas e botecos de esquina.

E quando os dois se enfrentaram, na famosa cena do interrogatório, o tal Pilatos nem chegou a ter tempo de lavar as mãos: Jesus Cristo não gostou da maneira como Pilatos tratava-o – e ficou pensando, em cena aberta, que era muito atrevimento um vagabundo daqueles lhe falar alterado. O povo ria das arquibancadas e o delegado não gostava disso:

“Esse sujeito está se aproveitando da coisa para me humilhar em praça pública”, pensou Jesus Cristo se comendo de raiva. Em seguida, deu meia-volta em torno de Pilatos e o segurou no cangote, dizendo em alto e bom som:

– Teje preso, seu fresco, que eu não sou nenhum ladrão para ser desacatado por um bedamerda da sua laia!

E por falar em ladrão eu vi um barrabás “espritado”… O povo gritava: “Barrabás! Queremos Barrabás, Barrabás, Barrabás!”… O prisioneiro foi lançado das grades e tombou estrebuchando no meio do palco. Ninguém entendia por que Barrabás estava fazendo tanta estrepolia no chão, gemendo e se contorcendo, botando espuma pela boca, até que um fariseu correu ao tablado e avisou:

– Vocês não estão entendendo não? O homem tá passando mal, ele é um epiléptico!

E eu vi com estes olhos que a terra há de comer uma engraçadíssima profanação da Santa Ceia. Uns moleques vadios, convidados para auxiliar na contrarregragem, encontraram uma forma de bagunçar o coreto na hora de fazerem o pão entrar em cena.

Era um pão-espada, daqueles compridões, doado para a produção pela padaria do bairro. A peça se apresentava no horário da noite e então meninos, no escurinho da quadra da esportes, abriram um buraco no meio do pão e puseram titica entre os seus miolos. Jesus Cristo, que não sabia da proeza, dividia o alimento entre os seus apóstolos e os doze rapazes começaram a entender que havia algo de errado.

Conduziam o alimento no sentido da boca e paravam, faziam caretas, mas a ética da cena impedia os comentários. Alguns desistiam e o largavam discretamente na mesa, pois aquele pão só tinha cheiro de merda. Felipe e Tomé foram as únicas vítimas, os únicos discípulos que comeram do pão de forma desavisada. A confusão sobreveio mais tarde, com investigação e tudo, mas nenhum dos moleques assumiu a culpa.

E eu vi um Jesus que deu um esporro da cruz. Já estava morto lá em cima, com a cabeça pendendo para o lado esquerdo, e aí um soldado foi limpar-lhe o sangue com uns trapos de lã amarrados num pau. Na ponta do cabo havia uma pena de galinha, e foi aí que começou o troço… O soldado era um negro musculoso que gostava muito de fazer gaiatices. Quando ele esfregou os trapos no Cristo, o ator abriu um olho de cima para baixo e cochichou ao soldado: “Cuidado, Negão, que essa pena de galinha tá fazendo cócegas no meu sovaco…”

O soldado gostou do que provocara e, a partir de então, começou a repetir a proeza, triscando o penacho nas axilas do Cristo. O Cristo se controlava para não se mexer na cruz. O soldado negro, de costas para a plateia, podia rir à vontade, e Jesus Cristo sussurrava nos dentes: “Negão, você pare com isso, Negão; deixa de sacanagem, Negão…”

O negão já pensava na farra. Ia contar a todo o elenco depois. O penacho roçava no sovaco do Cristo e o Cristo trincava a boca, se espremia, botava água nos olhos: “Quando eu sair daqui, Negão, eu vou te ferrar… Você me paga, Negão!”

O negão não obedeceu e continuou. Até o Jesus não se aguentava e já queria rir pelas cócegas. Ao invés disso, remexeu-se na cruz e meteu o pé na cara do soldado, gritando a todas alturas:

– Deixe de frescura, Negão!

A plateia foi abaixo. São coisas desse tipo que acontecem, sempre, nas paixões de cristo das comunidades.



Por Tarcísio Pereira - Escritor, Teatrólogo, Jornalista e Publicitário. Membro da Academia Paraibana de Letras.