Vladimir Carvalho foi homenageado na 22ª edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, recentemente ocorrida. Junto com as homenagens, e fazendo parte efetiva, a Academia Brasileira de Cinema, por meio da RioFilme, órgão que integra a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro fez uma edição do livro VLADIMIR CARVALHO: PEDRAS NA LUA E PELEJAS NO PLANALTO, de Carlos Alberto Matos. Trata-se de uma biografia do cineasta nascido em Itabaiana, Paraíba, e um dos caras que fundou o moderno cinema brasileiro. Ao seu lado, na elaboração do agora mítico ARUANDA, estavam Linduarte Noronha (Diretor da obra), João Ramiro Mello e o diretor de fotografia, Rucker Vieira.

Gosto de ler biografias de artistas, nem tanto pela curiosidade ou fofoca pura e simples, mas, principalmente, porque ao se expor o biografado deixa rastos dos seus procedimentos estéticos, muitas vezes desde o início de uma ideia poética até o modo como ela é materializada na obra, e no caso de ARUANDA, o filme que é uma pedra iconoclástica do moderno cinema brasileiro.

Algumas boas surpresas aparecem em sua biografia. Uma delas é de que na juventude Vladimir Carvalho foi um dos fundadores do Teatro Popular de Arte, cujo manifesto afirmava que “não faremos arte dirigida. Dirigiremos a arte para o povo”, frase que aponta desde o princípio para onde iria a arte deste homem que é hoje, ele próprio, um ícone do cinema documentário nacional. Opa! Tem-se aí uma indicação importante para a historiografia do teatro paraibano: o Teatro Popular de Arte. Que grupo foi esse? Quem o compunha? Que espetáculos montou? São perguntas que ficam paradas no ar. Vladimir não entra em detalhes, não é o caso, mas aponta um caminho de pesquisa, e se um dia eu tiver a oportunidade de estar com ele, eu me lembrarei, espero, de lhe fazer as perguntas pertinentes. De toda forma, Vladimir conta que foi ator numa peça metalinguística, A PRIMA DONNA, de José Maria Monteiro, autor paraibano que conheci muito brevemente na minha juventude, e quem estava no elenco era Zezita Matos. Veredas do teatro paraibano.

Não conheço Vladimir pessoalmente, digo no sentido de entabular com ele uma conversa. Mas sempre que o vejo no Aruanda fico com o sentimento de que estou perdendo alguma coisa em não ser amigo dele, tamanha a simpatia que ele inspira. Ontem mesmo, ao deixar o meu filho no aeroporto Santos Dumont, encontrei com Walter Carvalho, o irmão mais novo de Vladimir, e mesmo por tabela estendi a simpatia para o fotógrafo que admiro. Que dupla de irmãos, meus caros.

No livro biográfico, Vladimir fala de pessoas que eu conheci, mas com quem jamais troquei uma palavra. É o caso de Linduarte Noronha. Eu o via nos corredores do curso de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, quando eu era estudante de teatro naquilo que era o Departamento de Comunicações e Artes. Com o seu indefectível cachimbo à boca, Linduarte passava e eu o sabia diretor de ARUANDA. Mas era professor, e eu, então, aluno, uma espécie de enfant terrible, não lhe dava a menor importância. Não sei se há beleza na ignorância da juventude, mas a rebeldia é um preço a ser pago talvez com algum arrependimento, principalmente quando eu leio Vladimir dizer que “valia a pena seguir Linduarte a qualquer parte da Terra”. Ele mesmo, Vladimir, fora aluno de Linduarte Noronha, quando este era professor de geografia no Lyceu Paraibano.

Vanildo Brito (outro nome importante também para o teatro), citado por Vladimir, foi o meu professor de estética na UFPB. As aulas de Vanildo Brito foram das poucas que me deixavam completamente em suspensão. Eu tinha aulas com Vanildo no último horário das sextas-feiras, e quando terminava, era noite, e se fosse de lua cheia, eu, tomado pelas reflexões que emanavam nas aulas de Vanildo Brito, me metia no matagal da UFPB (não havia cerca, arame farpado, nada) e por lá ficava a emular as lições do mestre, transferindo para a natureza o sentido da beleza indefinível da arte e da vida.

E por falar em beleza, em razão de viver, em filosofia que sustente o sentido das coisas sabidas e das intuídas, Vladimir foi colega de sala de Caetano Veloso, sempre com o caderno de músicas à mão, na Faculdade de Filosofia na Bahia.

Entre os cineastas com quem Vladimir Carvalho trabalhou consta um com quem quase realizei uma obra, Manfredo Caldas. Eu havia escrito o romance O RONCO DA ABELHA. Manfredo Caldas ao o ler chegou para mim e disse que iria filmá-lo, seria a sua primeira experiência com ficção. Entre o momento que Manfredo me procurou até o momento do seu falecimento, alguns anos transcorreram. João de Lima, de quem Manfredo era cunhado, me disse que na sua mesa de trabalho fora encontrado o projeto do roteiro que Manfredo vinha desenvolvendo. A vida é breve, e nem tudo que desejamos cabe em seu tempo tão esquálido.

O livro biográfico de Vladimir Carvalho é um acervo de rica memória não apenas do cinema, mas da cultura brasileira como um todo. Nele vê-se um homem que está nesta atividade de guerrilheiro cultural desde os fins dos anos cinquenta. Sua trajetória pessoal é de alguém que sai de uma cidadezinha do tamanho de nada e ganha a imensidão de um país em seus mais de quarenta filmes realizados. Um homem que está na raiz e na origem do cinema que revelou o Brasil para os brasileiros. Daí a razão das justas homenagens que vem recebendo. Salve Vladimir de Carvalho, conterrâneo velho de guerra.