VIVA O POVO BRASILEIRO foi o primeiro romance que eu li de João Ubaldo Ribeiro. Um épico à maneira de Cem Anos de Solidão, e creio eu, a obra do escritor baiano reflete a total influência de Gabriel Garcia Marques na composição de uma narrativa labiríntica, na qual as gerações atravessam o tempo e vão moldando o caráter das personagens como uma memória permanente e imanente nas ações que muitas vezes se repetem em espiral.
Do meu ponto de vista, a obra de Gabriel Garcia Marques serve de modelo para o também labiríntico A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, outra extensa e imbricada narrativa. Ambas, somadas, nos dão uma dimensão imaginária e antropológica desse povo que somos nós, brasileiros. Mas neste quesito, no qual a literatura molda ou espelha o nosso caráter nacional, eu somo outros livros que considero pedras basilares nessa construção de nós mesmos: Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Essas obras, de onde eu as observo, formam um extenso painel de nossa brasilidade e a seu modo marcam e identificam os nossos mitos fundamentais, o sertanejo, o povo pobre mestiço, os pretos, os indígenas, as crenças, os caboclos, as gentes que sempre foram relegadas pela história, digamos “científica”, esta sempre centrada nos grandes feitos (quase sempre grandes mal-feitos) de homens que têm em comum a branquitude inventada e a coragem superdimensionada para parecerem aquilo que historicamente não foram e não são: heróis da pátria. Estes são, antes de tudo, heróis de livros escolares, heróis de histórias inventadas, heróis de si mesmos ou de suas castas, heróis de mentira, heróis de nada, porque herói, herói mesmo e que vem sustentando uma luta épica contra os dragões da maldade que atravessam a história deste país é o povo brasileiro, em todas as suas matizes de cor, de raça, de cultura. O povo brasileiro, que a literatura ficcional resgata do limbo a que foi relegado pela literatura “científica”, aquela que pomposamente chamam de história.
É chegada a hora de rever essa história e colocar as coisas do modo como as coisas foram e são. Há um passado terrível de massacre aos povos indígenas primeiramente, com genocídio de raças e culturas ancestrais. Depois, impetrou-se um outro crime contra a humanidade: a escravidão de povos africanos e com ela a diáspora forçada de um continente a outro. É preciso que os países europeus reconheçam que eles são a causa do mal que o mundo sofre, um mundo doente por conta de desmedida ambição, que pode, ainda nos tempos que correm, nos levar a todos à destruição da vida. Ou ao menos da nossa vida. É preciso pacificar os corações, e para isso, a literatura ficcional deixa claro, faz-se necessária a reparação histórica aos indígenas, aos afrodescendentes, aos mestiços pobres desse país que sempre foi governado por uma gente que tem como traço comum a mesquinharia mais perversa, a maldade mais abjeta. Estou falando de história acontecida e superada no tempo? Não, estou falando de agora. Por exemplo: o marco temporal em discussão no Supremo Tribunal Federal. Se aprovado, retira de povos indígenas quase dizimados o direito à terra ancestral. Não aprová-lo significa uma reparação histórica e um caminho para a recuperação da dignidade de povos que tiveram suas terras invadidas e tomadas, seu patrimônio cultural destroçado pela falta do elo comum, a terra. Outra reparação fundamental e necessária: igualdade de direitos dos pretos, indigenas e pardos que formam a imensa maioria do povo brasileiro. Quando a polícia invade uma comunidade atirando, matando criancinhas que brincavam nas salas dos seus barracos, está fazendo aquilo que historicamente a repressão sempre fez com os pretos e os pobres. A polícia jamais invadiu o Condomínio da Barra, por exemplo, onde uma certa família de bandidos ricos tem residência, jamais um policial chutou a porta de uma mansão ou entrou atirando, mesmo que naquele condomínio morem os assassinos de Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes, mesmo que tenham lá encontrado um arsenal de armas então escondidas. É preciso que haja reparação histórica para pacificar os espíritos. É preciso que haja oportunidades de educação de qualidade, de trabalho e de compensação para os pretos, pardos, pobres e indígenas. O contrário disso é um enorme desperdício de talentos que são, antes de tudo, riqueza de uma nação.
Estas coisas me vinham à memória enquanto eu assistia ao espetáculo adaptado do livro de João Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro, um musical imperdível, com um monte de músicas lindas compostas por Chico César.
Adaptar um romance caleidoscópico como aquele é uma tarefa hercúlea. E este, ao meu ver, é um belo trabalho de André Paes Leme, que também dirigiu o espetáculo, outra tarefa complexa. Viva o Povo Brasileiro reúne um elenco enorme de atores/atrizes que cantam, que dançam, que tocam instrumentos vários, que interpretam com maestria os seus papéis. A obra vem bem a calhar para esses tempos que atravessamos, nos quais os direitos da pessoa humana estão em evidência, clamando, pedindo, exigindo reparação e igualdade entre as pessoas desta nação tão vilipendiada pelos seus mandatários. O Brasil não é mais uma capitania hereditária, embora a política vigente teime em ignorar esta realidade. Mas estão aí pretos, pobres, indígenas, homens e mulheres a contestar os podres poderes. VIVA O POVO BRASILEIRO! Assistam. Vale a pena, ou se vale! Um lindo espetáculo.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.