Mal recuperamos o fôlego, após o filme Ainda estou aqui (Walter Salles, 2024) ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a película Vitória (Andrucha Waddington, 2025) estreia exitosamente no cinema.

Em plano geral, na tela grande, uma idosa sentada em um banco contempla a paisagem da praia de Copacabana, aquela que já foi a “Princesinha do mar”, tema-alegoria musical de João de Barro, o Braguinha e Alberto Ribeiro (1944), imortalizada na voz de Dick Farney (1946), e depois por vários cantores.

Logo, pelo prisma audiovisual, mergulhamos em um cenário que faz parte do imaginário popular há décadas, sendo objeto da paixão dos brasileiros (e estrangeiros) pela imagem icônica da Cidade Maravilhosa, no cinema e na televisão.

Arrebata-nos na primeira cena o olhar profundo da velha mulher sábia mirando o infinito, como quem conhece as alegrias e dores do mundo. Ali, o flagrante do olhar sereno da atriz Fernanda Montenegro, do alto dos seus 95 anos, encarnando a personagem ‘Nina’ e posteriormente ‘Dona Vitória’, representa a conquista das mulheres dos seus direitos e exercício da liberdade, após anos, décadas, séculos de luta contra a dominação masculina. A câmera clara de Waddington captura uma imagem fotográfica da maturidade do feminino’ que se estende para além do cinema, na história e na experiência de vida.

Fonte: Google imagem

A grandeza do filme consiste em virar a câmera para o outro lado do Rio de Janeiro, mirando a zona subterrânea do famoso bairro e nos atira no cenário caótico da favela, nas entranhas profundas da outra Copacabana. Nina abre as persianas do seu apartamento e nos mostra, pelas frestas, uma visão do ‘Inferno de Dante’. As cenas ao vivo de um teatro da crueldade humana: o domínio dos afetos medonhos: o medo, o ressentimento e o ódio orientados para a agressão, violência e extermínio do outro.

Um flagrante do reino do tráfico, ilicitude total, contrabando, contratos sinistros entre traficantes, policiais e milicianos, a violência do tiroteio noturno, corrupção de menores, matança e feminicídio.

 

Nada seria possível ali sem o “ativismo fotográfico” da idosa. Cansada do tiroteio, das balas perdidas, do barulho infernal que não lhe deixa dormir, recorre às autoridades policiais e solicita medidas de segurança. É ignorada e tem a ideia de adquirir uma câmera fotográfica para registrar o absurdo cotidiano que a rodeia. Assim se torna uma ‘espiã’ que filma a zona do inimigo. E registra o cotidiano da criminalidade e as ações criminosas dos bandidos, passeando armados pela via pública, em plena luz do dia, e comemorações com tiros de metralhadora para o alto pelos traficantes (que incluem meninos menores de idade).

Nina se abala profundamente ao assistir sua amiga, mulher trans (Bibiana / Liin da Quebrada), ser alvejada pelo tiro de um traficante.

 

Volta à delegacia, procura uma delegada para entregar as provas dos crimes, mas os filmes vão parar nas mãos do repórter policial, que descobre ali um verdadeiro testemunho contra o crime organizado em Copacabana. Logo encontra a prova do crime para a polícia. Essa reportagem publicada viria a transformar radicalmente a situação na comunidade.

A prisão dos criminosos significa a libertação da comunidade das abjetas e tóxicas ações do ‘governo paralelo’ (quadrilhas compostas por traficantes, policiais e milicianos). Entretanto, a virtual reportagem do crime colocaria Nina na mira dos contraventores denunciados, que por sua vez se vingariam da ‘velha X9’. Uma delegada se coloca no caso em favor da prisão dos culpados, mas contra a ‘reportagem jornalística’ pois esta atrapalharia o trabalho da polícia.

A atuação do personagem do repórter (Fábio Gusmão/ Alan Rocha) é marcante pela construção fidedigna de um perfil do jornalista no cinema.

Um olhar mais atento encontraria aqui o sujeito ético, objetivo, racional, destemido, e empenhado na busca e revelação dos fatos, o profissional obstinado em demonstrar a ‘verdade factual’ sobre o crime organizado. E o outro lado, o ser humano sensível à dor e ao sofrimento do outro. O jornalista é empático, solidário, camarada e se envolve emocionalmente com aquela mulher que, no crepúsculo da vida, arrisca a vida lutando contra os malfeitores que criam o caos social, o mal-estar na comunidade, a infelicidade e a sensação de insegurança perpétua.

A narração do filme é muito ágil, dinâmica, flui bem quadro a quadro, e se preocupa em elaborar intervalos, pausas, brechas para o público pensar. Diferentemente dos filmes de ação e aventura, em que brigas, tiroteios e efeitos especiais embotam o pensamento, Vitória nos dá a chance de refletir.

Há uma boa sacada no filme, que deslisa para o quase cômico. Nina é raptada, tem medo, mas ocorrem imprevistos e cenas surpreendentes. Ali se abre um pretexto para Fernanda Montenegro dar um show. Ela encena um enfrentamento, faz um discurso que desmancha a arrogância da quadrilha. Ela é massagista, tem que fazer ‘massagem forçada’ num bandido que está “troncho”. Então, ela se aproveita e ao massagear quase esmaga o debilitado, que grita alto como fera ferida; ela o coloca fisicamente e moralmente no chinelo. É como uma peça de comédia italiana, onde o riso leva ao siso. Em verdade, aqui a sabedoria enfrenta a barbárie. E La Montenegro brilha.

Não deixa de ser tragicômico o gesto daquela idosa armada com uma câmera fotográfica, “brechando o mundo lá fora”. E o fato dela ser ‘delatora’ nos remete ao sentido que envolve esse termo. ‘Delatar’ é desrespeitar a ética dos ativistas e também dos próprios bandidos, dos traficantes e foras-da-lei.

A palavra e o ato carregam um estigma: relembremos, a figura do “dedo duro” está queimando no Inferno de Dante Alighieri. Mas a atriz, na sua performance subverte o sentido pejorativo do nome e o ato de delatar. Graciosamente, Nina/Vitória desnuda uma outra face do acontecimento: para ela, delatar significa se salvar e salvar a comunidade de uma existência angustiada, com medo e em perigo constante.

Destaca-se no filme a potência e o vigor do feminino numa sociedade em mutação, em que o machismo e o patriarcado se encontram em declínio. E, pelo prisma intersecional (quando os temas de gênero e etnia coincidem), isto é, há o embate do feminismo, mas há também uma projeção do anti-racismo na narrativa.

O personagem do menino negro adolescente (Marcio/Thawan) é básico na trama. Primeiramente pela intensa ligação afetiva que há entre os dois. Aqui retorna um pouco – em outro sentido – o simbolismo da mulher-madura com sentimento materno, como houve no caso entre a personagem Dora/Fernanda e o menino Josué (representado por Vinícius de Oliveira), em Central do Brasil. Mas há, logo em seguida, a surpresa do garoto abduzido pelo crime, sua queda e metamorfose em delinquente. Ela persiste no afeto, dedicação e zelo pelo menino, mesmo que este tenha se tornado uma ameaça, e pode se voltar contra ela, fazer-lhe o mal.

Um traço ético-estético marcante neste filme de Waddington é o tratamento humano, respeitoso, includente à ‘mulher trans’. Cumpre assinalar a empatia e cumplicidade entre a velha senhora e a personagem trans (Bibiana / Liin da Quebrada). A cena das duas dançando é impagável,

E há, claro, no fio condutor principal, uma observação da condição do velho na sociedade brasileira, relembremos, Copacabana é conhecida como um reduto dos idosos. Logo, o filme oferece um retrato do idoso resiliente, saudável, cheio de vigor, coragem e tenacidade. Serve para desconstruir anos-luz de etarismo nas representações convencionais dos anciãos. Inclui a pessoa de idade no mundo profissional. Trata do velho na vida social, em toda sua complexidade, enaltecendo suas virtudes, garra, obstinação e potencialidade.

Ficará na memória do cinema o olhar brilhante da personagem de Nina / Vitória, permanentemente atento, inquieto, questionador. Ela têm o ânimo, a disposição e a vivacidade típicos dos jovens, pois é jovem de espírito. Além de massagista, tem 80 anos, é muito ativa, dinâmica, andarilha, curiosa e se torna fotógrafa, cinegrafista, espiã, cidadã-justiceira.

O filme corajosamente derruba a barreira do medo e do conformismo face à violência, corrupção policial e criminalidade. Mas a clave forte da narrativa incide sobre o foco nos afetos positivos, que proliferam, conferindo dignidade à narrativa. Os laços sentimentais entre a velha, o repórter, a trans e o menino revelam nuances importantes no campo dos afetos, há muito calor humano nas redes sociais presenciais.

Então, no tempo do Kairós (da sacada, da hora certa, da oportunidade), o filme Vitória coloca mais um tijolo na recuperação do processo democrático brasileiro. Os valores afirmativos, os afetos elevados, solidários, o pensamento, o discurso e a conduta civilizados, aos poucos vão vencendo a barbárie. E o cinema de Andrucha Waddington, com Fernanda Montenegro, assim como Ainda Estou aqui (de Walter Sales com Fernanda Torres) é – ao mesmo tempo – guerreiro, sensível, firme contra a barbárie e altamente civilizado. Este dado é importante no cinema da redemocratização brasileira, após a gestão autoritária neoliberal.

Há uma delicada nuance nas relações entre os personagens: Waddington zela na captura dessa “parte invisível” dos afetos que envolvem os personagens. Cumpre destacar a dimensão do respeito, confiança e solidariedade entre os membros da comunidade, apesar do contexto adverso, hostil e desestabilizador do tráfico. Este seria um bom mote para a decifração do filme: ‘a amizade é um vírus de outro planeta’.