Nos anos 20 do novo milênio fui seduzido por obras paraibanas distintas como O pássaro secreto (Marília Carneiro Arnaud, 2020), O que pesa no Norte (Tiago Germano, 2022) e Gótico Nordestino (Cristiano Aguiar, 2022), que em sua diversidade de gênero, estilo, forma e conteúdo, me apaziguaram o espírito durante e após a pandemia.

O livro Verde Gás (Ricardo Oliveira, 2023), por sua vez, é arrebatador pela maneira como enfrenta a distopia religiosa, política e ambiental de nossa época. O mal-estar nacional se disseminou desde o ano do golpe de 2018 e seguiu com o bolsonarismo. Junto com isso, houve a epidemia da COVID 19 que nos assombrou, matou milhões e nos levou ao grande confinamento. Uma realidade mais distópica é impossível. De algum modo, tais circunstâncias terão suas emanações e serão exorcizadas no livro Verde Gás.

A ficção Verde Gás (Ricardo Oliveira) se revela como presságio (começou a ser escrito em 2018), imersão (durante o grande confinamento) e enfrentamento da distopia (nos anos 20 do século XXI). A pandemia na saúde (Covid) e pandemônio na política (bolsonarismo) expressam as formas dessa distopia. O romance Verde Gás atravessa, incorpora e enfrenta essa sinistra emanação que – de algum modo – conhecemos do cinema norte-americano, tão prodigo na enunciação do terror, violência, destruição, mas tem realizado bons filmes artísticos na especulação ficcional de futuros distópicos.

Contágio (2011), Os Doze Macacos (1995) e Epidemia (1995), são filmes que antecipam uma representação da distopia, da crise, da “vida humana sob o risco do extermínio”. Entretanto, a originalidade do romance consiste em atualizar a experiência no Nordeste Brasileiro, em João Pessoa, Paraíba. No texto, as pessoas morrem sob o efeito de um gás verde, e João, o protagonista atuará nos altos e baixos desse cenário em ruínas.

A narrativa é ágil, ardilosa, captura a atenção do leitor e o carrega por veredas surpreendentes que geram a experiência de choque. Há o choque pelo nosso reconhecimento no enredo, pois passamos pela experiência trágica da epidemia, da proximidade com a morte. Além disso, os antagonistas reacionários e violentos, que assombram no universo da ficção de Verde Gás, infelizmente também habitam o princípio da realidade, como patriotas armados, pastores insandecidos, milicianos criminosos e terraplanistas raivosos, que desmantelam o espaço público democrático.

A força de vontade, coragem e tenacidade do protagonista João nos levam a atravessar os escombros, e junto com ele, superar obstáculos, transcender as adversidades. Mirar nos olhos da tragédia e enfrentar o mal absoluto. Esse é um grande trunfo do autor.

A célebre frase de Dante Alighieri “Vós que entrais aqui abandonai toda a esperança” poderia servir de epígrafe para essa narração sombria, pois a Idade Mídia tem fortes traços da Idade Média. Em outro registro, o espectro da distopia se traduz de modo prosaico no jargão da série da NetFlix: “Isto é muito Black Mirror”. O bug tecnológico é o terror do cidadão na era digital. Mas observando-se a crise nas nervuras do real, o que assombra é o horizonte nublado, “sem utopia”, quase sem luz no fim do túnel, onde tudo parece um beco sem saída. Na obra, astuciosamente, aos trancos e barrancos, Oliveira nos mostra as entradas e saídas para o estranho beco em que o novo milênio nos meteu.

É muito peculiar como o autor atualiza uma nova “invenção do Nordeste” e de João Pessoa, na Paraíba, nos anos 20 do sec. XXI, nas imagens arrojadas dos luxuosos condomínios fechados, arquitetura primorosa e habitat pós-moderno, que em nada se parece com um retrato saudosista da região, sem seca ou geografia da fome, nem um território de revolta. Em um cenário tão asséptico, seguro e sofisticado seria improvável a irrupção da violência, da morte ou do genocídio. Mas é aí que o texto surpreende.

No livro (que já antecipa um roteiro de cinema) a cidade não se parece tampouco com os cartões postais e imagens das mídias turísticas sobre João Pessoa, a “Cidade Verde”, suas praias exuberantes, ecologia pacífica e acolhedora. E aqui já se expressa a grande transgressão estética e ecopolítica, quando o lírico “verde das nossas matas” se torna perigoso, pois o enredo trata de um gás verde letal que mata a maior parte da população. Ou como escreve Débora Ferraz no texto de apresentação no site da editora:

“Os elementos do pop (ficção distópica e coming of age) dão forma a um Nordeste contemporâneo e mostram que, às vezes, a gênese do Mal está justamente em acreditar que tudo o que se colore de verde há de ser a esperança.” (Ferraz, 2023)

Logo, nota-se ali uma estratégia narrativa: mostrar o avesso do avesso no cerne de uma realidade de “cabeça para baixo”. O livro elabora uma equação lítero-sociológica e ecopolítica que traduz com fidedignidade o mal-estar contemporâneo (local e mundial) na religião, na política e na ecologia. Coloca as cartas na mesa e leva o leitor a pensar.

O protagonista João relembra sua iniciação, decepção e afastamento da Igreja Evangélica, onde antes encontrava conforto espiritual através da fé, aconchego e segurança da comunidade religiosa. Mas descobriu o fanatismo, o individualismo, os interesses econômicos e políticos, o dogma, repressão, sectarismo. Entendeu a natureza do fundamentalismo como ódio e violência contra outras crenças e visões do mundo.

No plano das relações afetivas, os laços com amigos da infância e juventude se modificaram. João entendeu que as diferenças ideológicas, de interesse e de opinião se tornaram abismos intransponíveis. Viraram adversidades tóxicas, inimizades. O que era um espaço público, democrático, onde conviviam as diferenças, tornou-se cenário de uma estranha “modernidade líquida”, palco de uma guerrilha cultural e ideológica, lugar de violência, agressão e linchamento. O radical ex-amigo de João no passado, hoje o vê como comunista, petista, “subversivo”, alvo do seu ódio e ressentimento. João representa o outro que pensa diferente, logo aparece como ameaça, inimigo que precisa ser eliminado.

E a relação com a natureza numa ambiência outrora enaltecida com matizes paradisíacos, numa cidade saudavelmente verde, pacata e atraente, como João Pessoa, transforma-se – de repente – em ambiente hostil, de luta pela sobrevivência, pois a “mãe natureza” tornou-se “natureza mortífera”. Mas a poluição é química e não orgânica. No texto, a necropolítica, o genocídio, o extermínio das vidas humanas são causados pela irracionalidade dos radicais de extrema direita, agentes do poder do dinheiro, da ética neoliberal, avessos à compaixão e à solidariedade, responsáveis pela disseminação do mortal gás verde que, na prosa de Ricardo Oliveira, dizima quase toda população.

O autor se inspira nas revistas de ficção, telejornal, seriados de TV, videogames e principalmente na distopia apocalíptica dos filmes de sci-fiction norte-americanos. Entretanto, traz essa representação para os trópicos, para uma cidade de médio porte, João Pessoa, na Paraíba. Logo, estabelece fortes laços de identidade, reconhecimento e adesão por parte dos leitores jovens e veteranos, nordestinos e pessoenses que se reconhecem na simulação de João Pessoa, não mais como uma “fazendinha à beiramar”, mas uma metrópole, com tudo o que isto implica de avanço e retrocesso. Aí jaz seu matiz universal.

O autor-jornalista parte de referências intertextuais e intermidiáticas (impressos, TV, games, cinema, hipermídia), mas o faz pelo viés da criação literária, com estilo cinematográfico. Remando contra a maré, seduz uma geração que lê pouco e se mantém entretida e refém dos signos voláteis das redes sociais (instagran, twitter, tiktok). Para os mais antenados, o suporte-livro atua exitosamente, pois consegue desnudar a complexidade do “real” através de um recurso ético-narrativo que dá tempo para o leitor pensar. Para além de uma sociologia mais difícil e empenhada na decifração do (nosso) cotidiano trágico (medonho, distópico e pandêmico), o livro Verde Gás usa a imaginação literária para nos revelar uma sociedade intoxicada, dividida, e o faz sem dourar a pílula.

O livro mira fundo na tragédia da cultura contemporânea, com tudo o que esta carrega de insanidade, egoísmo, burrice, maldade, loucura. Verde Gás parece uma simulação das vidas humanas como um remake do filme Mad Max.

Há comentários sobre a obra como um “romance de formação” e isto só vem a elevar a qualidade da obra se percebermos como o protagonista João, enfrentando as dores, as perdas, as adversidades extremas, cresce, amadurece, torna-se alguém mais forte. No encontro com o Outro, com o estranho, com o desconhecido, o arquiteto João descobre o valor da alteridade, se descobre, transforma-se a partir do encontro-confronto com esse Outro, e assim aprende a sobreviver no ambiente da “terra devastada”.

A obra constitui uma representação ficcional da realidade transfigurada pela imaginação do autor; é uma forma de conhecimento (literário, jornalístico, sociológico e político). É igualmente um tipo de denúncia, que se apoia na verve da investigação jornalística e se expressa como narrativa ficcional inspirada nas artes das mídias.

Verde Gás contribui para a reconstrução do espaço público pela maneira como areja e revitaliza a cena literária. João, que usa máscara, escapa do efeito do gás, reergue o condomínio, limpa a sujeira, enterra os mortos, espanta a dor da perda e enfrenta os adversários. Ele é portador de uma ética que sinaliza um caminho, uma saída aos leitores. Pulsa no fundo um sinal luminoso que diz: a utopia é progressista e a distopia reacionária.

A obra é um bálsamo para o imaginário dos leitores e para a vida social, pois espanta o medo, a paranóia, a dissonância cognitiva, justo quando a esfera sociocultural – como um todo – necessita da imaginação criativa, vigilante, ética, astuciosa e oxigenada.

 

Referências

Questões políticas e romance de formação se misturam nesta intoxicante distopia nordestina. In: site Catarse, 11.07.2023. Disponível em: https://polinize.catarse.me/verdegas

‘Verde Gás’: autor explica história distópica passada em João Pessoa. In: Jornal da Paraíba, 17.12.2023. Disponível em: https://jornaldaparaiba.com.br/cultura/entrevista-autor-verde-gas

‘Verde Gás’: livro sobre distopia em João Pessoa discute sobre radicalismo na política e religião. In: G1 PB, 14.12.2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2023/12/14/verde-gas-livro-sobre-distopia-em-joao-pessoa-discute-sobre-radicalismo-na-politica-e-religiao.ghtml