Faz tempo, li um artigo instigante que me deixou pensando: “Não há mapas para esses territórios: a cibercultura como campo do conhecimento” (Erick Felinto, 2007). Hoje refaço um caminho inverso propondo uma cartografia, que deve funcionar como mapa para orientar os interessados em uma navegação no ciberespaço. Não me arrisco a estabelecer décadas, autores, nações nem ideologias para delimitar o tema. Tento apenas mostrar visões e experiências humanas com os fenômenos tecnológicos, e no fim das contas, inscrevo breve roteiro para uma trilha na pesquisa em cibercultura.
PRIMEIRA DIMENSÃO
Pierre Lévy habita a mesa de cabeceira de todos os pesquisadores em cibercultura, comunicação e tecnologia. Pioneiro, logo se tornou o guru do ciberespaço. Extasiado com a “revolução informática” e animado com a inteligência artificial, criou os conceitos de “cibercultura” e “inteligência coletiva”, dentre outros. Umberto Eco certamente o citaria como um “integrado” (entusiasta) das novas tecnologias. Mas, desbravador dessa mata teórica, Lévy publicou livros que viraram best sellers pelo mundo afora: As Tecnologias da Inteligência (1990), As Árvores do Conhecimento (1993), O que é o Virtual (1995) e Cibercultura (1997) são grandes referências. Sua obra é muito rica, inovadora e serve de base para o trabalho de professores, pesquisadores, jornalistas, e a crítica que lhe endereçam diz respeito justamente à acriticidade. Como se o deslumbramento o impedisse de ver as contradições reais, estando em breve surto de felicidade na “zona do virtual”.
Simultaneamente, André Lemos escreveu a primeira tese brasileira sobre o ciberespaço (Sorbonne, 1996), que virou também o top na bibliografia nacional Cibercultura – Tecnologia e Vida Social (2003), hoje já em nona edição. Uma obra densa, no sentido substantivo, inteligente, sagaz e provocante, trazendo ideias bem elaboradas, básica para os estudiosos da área e também para os antenados nas relações dos homens e máquinas. A pesquisa de André Lemos avança anos-luz nesse domínio, explorando a interação entre os humanos e as tecnologias, em livros como A Comunicação das Coisas (2022), que antecipa o debate atual da inteligência artificial. E o fenômeno da COVID lhe inspirou o livro original A tecnologia é um vírus: pandemia e cultura digital (2021), sobre as relações entre natureza e cultura, a viralidade da internet e seus efeitos no mundo vivido. Um envolvimento total na teoria e ciência do ciberespaço.
Não se pode tratar da cibercultura sem falar na “papisa” da Comunicação & Tecnologia, Lúcia Santaella, que produziu dezenas de livros, centenas de artigos e orientou muitas teses acadêmicas sobre o assunto. Desde o livro – com título provocante – Culturas e Artes do Pós-Humano: da cultura das mídias à cibercultura (2003) até o recente Neo-humano – A sétima Revolução Cognitiva do Sapiens (2022), sua obra atua vibrante em nossos corações e mentes. É como uma leitura imersiva no universo da Matrix, com a vantagem das pílulas vermelhas, ou seja, conhecer os ambientes tecnológicos, reconhecer seus perigos e suas dádivas, sabendo extrair dali as estratégias de acesso ao Conhecimento. Santaella se diz uma “fêmea teórica”, porém sua virtude mais nobre é contagiar os estudantes na vontade de saber orientada para o aprendizado filosófico e social da cibercultura. Seu ritmo de produção é veloz e cumpre conhecer seus textos nas mídias impressas e digitais, e suas aulas no YouTube são um mar de sabedoria.
SEGUNDA DIMENSÃO
Na academia, no jornalismo especializado e na editoria de livros sobre o tema, na área de Humanidades, Filosofia Política e Ciências Sociais, surgiu um “espaço crítico” importante, direcionado para as tecnologias de informação e comunicação, para além da função-entretenimento, mas como vetor de mudanças no mundo da Economia, Trabalho, Saúde, Educação, produção artístico-cultural, na vida privada e na esfera pública.
Nessa seara, ressalta o trabalho monumental do sociólogo Manuel Castells, A Era da Informação: Economia, Sociedade, Cultura (1999), em três volumes: “A Sociedade em Rede”, “O Poder da Identidade” e “Fim do Milênio”. O espanhol Castells, cidadão do mundo, percorreu a França e os Estados Unidos criando vigorosas redes sociocognitivas, e nos legou uma obra de fôlego, crítico-analítica, engajada e corajosa, como A Galáxia Internet (2001) e Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Internet (2012). A sua contribuição é fundamental como uma radiografia da sociedade informatizada e tudo que isso implica em conquistas, perdas, descobertas e surpresas.
A ideia de Muniz Sodré do ecossistema virtual, como um bios midiático ou bios virtual (Antropológica do Espelho), “estranha forma de vida”, é um insight forte para apreendermos os paradoxos da cibercultura, essa “realidade paralela” (na qual estamos todos imersos). Sendo um desdobramento do real, é claro, traz consigo os benefícios e os malefícios da humanidade. Além disso, Sodré alerta – criticamente – para o controle do ciberespaço pelo sistema econômico-político do turbocapitalismo e a geração do caos, violência e barbárie. Uma imagem conceitual adequada seria o cenário do filme Mad Max (1979), só que aqui a briga não é mais por água nem gasolina; a guerra do sec. XXI se faz contra os transtornos da desinformação, pós-verdade e “dissonância cognitiva” (o surto da terra plana). E a grande arma contra essa barbárie é o acesso ao conhecimento.
Hoje, como ontem, há situações-limite que levam a ações-extremas, desde os protestos de rua (presenciais e virtuais) nas “primaveras árabes” e “revoltas tropicais”. Grande parte disso advém pela mediação tecnológica, que reverbera na internet e redes sociais como amplificadores digitais. Logo, as redes e mídias sociais se infiltram nas zonas da política, economia, vida social e cotidiano, enfatizando os afetos tristes e as paixões desafortunadas. Todavia, a cognição inteligente e eticamente conectada enfrenta estrategicamente as adversidades, e nessa direção há livros que vão na mosca.
Grande parte das atitudes mundiais tem ganhado forma nas atitudes agressivas, cultura do ódio, cancelamento e linchamento virtual: são expressões recentes da “pulsão de morte”, verve predatória e irracionalidade coletiva, agora tudo on line. É preciso enfrentar, denunciar, combater as instâncias sombrias da ignorância, preconceito e perversidade, como nos livros: Os Engenheiros do Caos (2019), A Máquina do Ódio (2020) e Colonialismo Digital (2023). Eis três sistemas de resposta eficazes: o primeiro enfrenta a ameaça da big tech, big data e a midiofagia das megaempresas digitais que devoram tudo como pragas de gafanhotos; o segundo enfrenta o “gabinete do ódio” nacional, na denúncia dos nazifascistas brasileiros, desde as operações tecnológicas ilícitas no Palácio do Planalto; e o terceiro explora o racismo em rede, a tecnologia do mal, o colonialismo digital e mostra alternativas. Desse modo, o livro enfatiza a luta, que de certo modo, vimos no cinema, em filmes afrofuturistas, como Pantera Negra (2018).
TERCEIRA DIMENSÃO
Pelo viés da razão lúdica, há o despertar para as possibilidades abertas pela imaginação criadora, em obras como As Afinidades Conectivas – Para Compreender a Cultura Digital (SUSCA, 2019), uma imersão no Cotidiano povoado por entidades vivas e criaturas virtuais com as quais convivemos, cordialmente ou litigiosamente, mas sobretudo um locus privilegiado para o exercício de novas invenções lúdicas, vasos comunicantes e interações originais pela via conectiva do complexo arte-mídia-digital.
E, pela via da estética, há a obra da artista-arquiteta-professora Giselle Beiguelman, Políticas da Imagem: vigilância e resistência na dadosfera (BEIGUELMAN, 2021), um primor nas táticas de usar a tecnologia para afugentar a distopia através de novas utopias urbanas. E é impressionante a obra-experimento Coronavida, pandemia, cidade e cultura urbana (2020) lançando encorajadoras mensagens poéticas em laser, durante o confinamento, nas grandes paredes da metrópole.
É difícil não lembrar nessa direção o Protesto Holográfico da Espanha, contra a Lei da Mordaça (2015). Pela primeira vez, os hologramas, entidades virtuais, nossas extensões indignadas vão às ruas contra a opressão e autoritarismo. O fenômeno desafiou os poderes arbitrários constituídos, e constituiu material de interesse e curiosidade para os ativistas, policiais, juízes e jornalistas, diante da potência subversiva dos hologramas.
E finalmente o projeto Cidadania Digital – A Conexão de todas as coisas (DI FELICE; FRANCO E MAGALHÃES, 2023) é algo singular, pois trata da Ecopolítica, uso da tecnologia em benefício da ecologia, e explora as lutas dos povos originários, ambientalistas e bioativistas fortalecidas pela inteligência cognitiva conectada. Dos Ciborgues Indígenas (2007), às Paisagens pós-Urbanas (as formas comunicativas do habitar), até a utopia da Cidadania Digital, o grupo de pesquisa Atopos-USP (DI FELICE et al) abre amplas janelas para refletirmos sobre o ciberespaço, para além do seu lado útil ou nocivo, doce ou amargo. O vigor do conjunto da obra relembra o filme Avatar (2009), onde todas as coisas, gente, bichos, árvores estão em conexão. E há o deleite dessas capas finas, inteligentes, coloridas e bem boladas que dão vontade de degustar.
Para concluir
Em linhas gerais, fizemos um roteiro para navegar nas teorias do ciberespaço. Porque para pensar, falar e agir na sociedade em rede é preciso de um mapa seguro para se orientar. 1) primeiramente, há o fascínio na descoberta do mundo interativo, sensação de autonomia e liberdade total. 2) depois há o espaço crítico, diante do vício, compulsão e invasão da privacidade, big tech e big data, crias dos engenheiros do caos. 3) Enfim, há os hackers do bem, os ativistas e guerrilheiros que enfrentam a cultura do ódio e recriam as redes de afeto e solidariedade, e o “tesão de viver”, a parte boa desse negócio virtual.
Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).