Deus decretou um dia que todos morreriam dormindo. A humanidade aprovou a decisão. A ideia de Deus era a morte sem a dor da morte. Houve alegria no mundo inteiro, porque morrer era a realidade que permanecia, mas os perigos da vida chegavam ao fim. Nos cultos e liturgias, assembleias e orações, a reflexão era unânime:
– A nova decisão de Deus nos fez perceber que o nosso medo não era da morte, mas dos riscos que levavam à morte.
Então agora, que os riscos chegavam ao fim, poderiam viver perigosamente. Se vamos morrer dormindo, teremos morte tranquila – pensavam. Finda-se então a violência, bloqueiam-se as guerras, os carros podem correr em alta velocidade sem o perigo de acidentes, porque vamos morrer dormindo. E assim sempre, um paraíso se instalava na terra depois de tantas atrocidades.
E todos os óbitos passaram a confirmar o Desígnio: morriam pessoas todos os dias, mas na hora do sono. Os médicos diziam:
– A cirurgia foi feita regularmente, mas o paciente não resistiu. A sorte é que morreu dormindo.
Outros, de idade avançada, morriam de morte natural em pleno repouso. Era comum se dizer:
– Minha bisavó foi dormir e não se acordou. O meu consolo é saber que não sentiu a morte.
Um dia houve uma tragédia que sacudiu o mundo: o naufrágio de um enorme cruzeiro, em alto mar, deixara mortos mais de trezentos passageiros. Os únicos sobreviventes foram dois tripulantes que, em entrevista à imprensa, afirmaram categoricamente que todos estavam dormindo quando o navio afundou. Os fervorosos cristãos acreditaram nisso, mas não faltou quem raciocinasse:
– Ninguém morre afogado em pleno sono.
Diante da polêmica, Deus enviou a sua mensagem, justificando-se:
– No princípio era o sono. Afogaram-se, é verdade, mas se encontravam dormindo e, portanto, a profecia se cumpriu.
Conformaram-se – porque, por outro lado, foram informados de que os dois sobreviventes eram os únicos que estavam acordados quando ocorreu a desgraça. E isto bastava para convencer que as coisas de Deus eram certas.
As páginas policiais, que há tempos já não eram escritas, de repente voltaram a aparecer nos cadernos. A primeira delas trazia a manchete de um latrocínio, assalto praticado à noite na mansão de um rico, roubo seguido de um assassinato contra o casal da mansão. Os seguranças da casa, que tinham sobrevivido, declararam à imprensa que eles foram mortos enquanto dormiam.
O fato intrigou a todos e teve início uma nova polêmica: por que matar um casal que dormia e não os seguranças, que viram tudo e poderiam depor ou reagir contra eles? Mas um dos assaltantes foi preso e, friamente, assim depôs na polícia:
– Preferimos matar os que dormiam para que a profecia fosse cumprida, mas também para dizer a todos que não estamos aqui para brincadeira, pois o nosso poder ainda continua.
De repente, no mundo inteiro, um surto de vigília se apoderou das pessoas. A humanidade deixou de dormir, com medo da morte inevitável. Dias de trabalho, e noites em claro, contavam histórias e faziam festas intermináveis, para que pudessem enganar o sono. O tempo mostrou, porém, que todos perdiam a resistência física e passaram a morrer em plena luz do dia: por acaso tombavam nas filas de banco, cabeceavam nos escritórios, caíam nas avenidas e morriam em desmaios ou com pancadas de cabeça ao chão.
Deus não mandou mensagem, mas fez descer sobre todos um sono profundo. A humanidade inteira dormiu durante três meses, para recuperar o tempo perdido e a energia do corpo. Ninguém morreu nesse período, mas Deus enviou mensagem quando se acordaram:
– Jamais tive tanta tolerância, e desde que o mundo é mundo não houve tantos dias sem mortes. Deus não é vingativo, mas também espera que cada criatura faça a sua parte.
A verdade é que os humanos tinham medo da morte. Outros descobriram, ao contrário, que o pior dos medos era o seu inverso, o de não viver, pois a morte era a morte em qualquer formato e nem mesmo Deus agradou a todos.
Mesmo assim, quando alguém morria, até os incrédulos referiam-se a Deus como o seu culpado em potencial, e as palavras de consolo foram sempre as mesmas em todos os casos, quando passaram a dizer assim: “Não fique triste, irmão: foi a vontade de Deus”.
Desde então, agora foi Deus quem resolveu dormir.
Tarcísio Pereira
Escritor, Teatrólogo, Jornalista e Publicitário. Membro da Academia Paraibana de Letras. "Escrevo como quem navega: entre a tempestade e a bonança, toda criação é um ato de bravura e desbravamento de mares"