Em meio a tarde de domingo ouvi uma algazarra vinda da rua: crianças rindo e falando alto. Fui olhar da varanda o que estava acontecendo. Vi que havia um pequeno grupo de crianças, jovens e adultos. Estavam muito envolvidos em uma atividade. Uns manuseavam alguma coisa, e todos olhavam para o céu. De imediato pensei: “será que voltou a moda de caçar pokémons? Ou será outra novidade que não acompanhei?” Mas, ao olhar para cima, quase não acreditei no que via. Como pessoas comuns, moradores de minha rua, chegaram a este nível de evolução? – estavam empinando pipas! E eram daquelas bem com jeito de feitas artesanalmente.
Me distraí com aquela cena. Escolhi observar uma azul e vermelha, meio tortinha, e acho que por ser mais leve, bailava bem acima das outras. Fiquei lembrando do tempo em que brincava com essas coisas simples. É muito mágico juntar papéis de seda, palitos de gaiola, cola e cordão, e transformar em algo colorido que pode voar e levar junto o nosso olhar, nos fazendo rir bobamente. Na rua em que moro não há muita fiação e, portanto, nenhum perigo para essa brincadeira. É ainda um bairro onde os bem-te-vis vão vendo chegar aos poucos o tal “crescimento”. A um quarteirão de onde moro já está em construção um prédio de 25 andares. Com mais um tempo tudo será um paredão, sem espaço para objetos voadores e alegres ou bem-te-vis.
Percebi que, pelo menos enquanto fiquei na varanda, ninguém daquele grupo que se divertia, filmava ou fotografava a brincadeira. Parecia mesmo uma cena recortada de um tempo passado. Mas, de fato, acontecia.
Saí da varanda e me ocupei com outras coisas. Quando retornei, a tarde já começava a cair, a brincadeira havia terminado. Algumas pessoas voltavam da praia, “esturricadas” pelo pouco de sol do dia inteiro. Em alguma casa o som alto, tocando Raul. A noite foi chegando, os portões se fechando, e outros se abrindo para a hora do Ifood. Entregas barulhentas com buzinas de motos e sons distantes de interfones, e de campainhas discretas.
“É você olhar no espelho, se sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano, ridículo, limitado, que só usa dez por cento de sua cabeça animal”- a voz de Raul se espalhando pelo ar, ocupava a rua. Olhei os muros, os portões, as janelas. Pensei nas pessoas que passaram o domingo procurando matar o tempo por ter medo da vida. As que pediram Ifood, as que se drogaram, as que fizeram sexo para se distrair, as que ficaram presas nas telas das tv’s, as que se embriagaram, a mulher que se calou para não contrariar o marido no fim do domingo porque amanhã tem trabalho, o casal que se arrumou para ir a igreja, o bêbado que pensou no passado, o homem solitário e estranho que saiu com o seu cachorro pelas calçadas escuras, os que consultaram o saldo, as que rezaram pela “hora do anjo”. A noite chegou trazendo chuva.
E o domingo se arrastou para chegar na segunda…
“… que só usa dez por cento de sua cabeça animal”
E na segunda todos colocam suas máscaras para o baile cotidiano, para dançar conforme a música, ou “conforme a banda toca” – diz o dito popular, e se diz não é à toa. Algumas pessoas vão passar a semana opinando sobre tudo, problematizando tudo, questionando tudo, postando tudo nas redes sociais. Outras passarão a semana buscando vida nas telinhas de seus smartphones ou fugindo dela.
“… só dez por cento de sua cabeça animal”
As pessoas que brincavam de empinar pipas, certamente ainda estarão sentindo o vento no rosto, a luz do sol a encandear os olhos, as cores, os voos, a convivência, a amorosidade, a vida sem disfarces, o tempo vivido.
”… só dez por cento…”
“de sua cabeça animal”
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)