Vire à direita, Rua Catulo da Paixão Cearense” – avisa a voz no GPS utilizado pelo uber. É um caminho que faço uma vez por semana. Já sei o momento exato em que a voz anuncia que vamos entrar à rua do poeta que era maranhense e nasceu um século antes de mim. Automaticamente começo a cantar em silêncio o “Luar do Sertão”, com vontade de rir de meu tom um tanto dramático, melancólico “Não há, ó gente, oh! não, luar como esse do sertão.” Letra do poeta que tem nome de uma rua perdida em um bairro da capital paraibana.

Essa eu canto em silêncio, e quem não souber como é cantar em silêncio, tente fazer para entender. Eu sou especialista nesse truque. Às vezes posso estar com a cara mais séria que tenho, e uso, olhando para algo que estou sendo obrigada a olhar, ou fingindo escutar algo que estou sendo obrigada a escutar e, na verdade, estou cantando em silêncio.

Mas outro dia cantei em viva voz, também em um uber. Era um dia pesado, desses que a gente pensa que não vai aguentar. Eu passei um mês com uma infecção na garganta, algo ruim, com febre, dores, sem condições de trabalhar ou de fazer qualquer coisa que fosse, cansada de consultas, farmácias e antibióticos. Naquelas situações, que a maioria das mulheres conhece, em que temos que arranjar força e coragem como quem junta pedrinhas miudinhas, que por fim cobrem o chão e traçam o caminho a seguir, com um luzeiro. Pois bem, vinha eu, no uber, com uma vontade de chorar. Vontade de rio prestes a arrebentar quando eu chegasse na sala de onde hoje é minha morada. E então, no rádio do carro tocou Gilberto Gil, e mais do que isso, era a música que minha mãe cantava para mim nas vezes em que eu chorava “No woman, no cry (…) se Deus quiser tudo, tudo vai dar pé”. O motorista aumentou o som, mas logo baixou, e eu falei que fosse por mim ele poderia aumentar, aumentar, sim, colocar no volume mais alto. E assim ele fez e eu comecei a cantar, e ele riu e cantou junto. Depois seguimos conversando sobre as músicas de Gil. Na sala não desaguei. Cuidei de mandar cinco estrelas para aquele moço que cantou comigo.

Quem espera por mim em algum lugar onde eu vá chegar de uber, já sabe que chego me despedindo do (a) motorista como se o (a) conhecesse há anos. E de fato conheço. São mulheres que buscaram opções de criar os filhos sozinhas, são aposentados que vieram de outros estados e aqui procuraram um adicional à renda para fazer vida nova, são estudantes que precisam de dinheiro para continuar o curso, são trabalhadores que de repente se viram desempregados, são trabalhadores que não ganham o suficiente para pagar as contas, jovens que precisam de uma grana, pessoas com planos e que têm no uber um meio para guardar algum dinheiro. Pessoas com quem encontrei durante a vida inteira no trabalho e também na convivência pessoal. As mesmas histórias que escutei e escuto ao longo da vida.

Trabalhadores de um novo tempo, explorados pela velha mão invisível do sistema capitalista. Ser motorista de aplicativo é a saída encontrada por muitos que no novo mundo do trabalho circulam pelas ruas atendendo a comandos como se estivessem em mais uma corrida do ouro, garimpeiros de liberdade, de autonomia, ilusórias. Recentemente o atual governo anuncia o início de um caminho pela garantia de direitos trabalhistas para essa “categoria”.

Dizem que em pouco tempo teremos carros de aplicativos sem motoristas. Não duvido porque muito se disse de coisas que hoje usamos, que antes só se via em desenhos animados. Quem é da minha geração assistia, talvez, a animação da família Jetsons, onde tudo parecia mesmo definitivamente irreal e agora quase tudo aquilo existe. Já deram início aos testes nos Estados Unidos. Fico pensando se teria coragem de sair por aí em um carro sem motorista. Imaginando um carro inteligente em nosso trânsito caótico. Como seria essa situação?

Aliás, trânsito caótico é assunto para uber ao infinito. De onde eu sempre saio com minhas perguntas sobre quantas horas passam transitando nessas ruas, entre tantas outras que faço para entender como se vive com essa ocupação.

Voltando ao assunto música e ficando no tema uber, existe, é claro, essa parte que leva a tantas histórias: a música que os (as) motoristas escutam. Como se viu, às vezes dou sorte e o gosto musical é igual ao meu. Porém, na maior parte de viagens em uber, não é assim. Os mais educados e que lutam por estrelas ao final das corridas perguntam se quero que desligue o rádio, e eu sempre digo que não. Aproveito para ouvir o que não escuto normalmente, me divirto com as letras absurdas ou com a falta delas, sigo no pancadão, no piseiro, na sofrência, no funk, no sertanejo. Considero que ouvir música ajuda no trabalho, proporciona um relaxamento ou mesmo uma adrenalina para enfrentar o tal trânsito caótico. O único problema é depois para me livrar de uma coisa chamada “earworm”, ou para sair do palavreado de um mundo uberizado, “minhoca de ouvidos” – um fenômeno, uma agonia, na verdade, onde a música fica grudada na memória e você se vê em uma infinita necessidade de repetir a melodia ou principalmente o refrão. Isso só cessa quando se escuta outra música, algo como um desinfetante musical a limpar uma música do chão da memória, trocando o aroma por outro preferido.

Já tive problemas com carros e motoristas de uber, sim. Poucos, no entanto. Raramente registro menos de cinco estrelas. Me preocupa que nesse poder de distribuir constelações eu possa prejudicar um (a) motorista que apenas estava em um dia péssimo, ou que não tem condições de ter um carro melhor, ou sei lá o que. Mas já houve casos também, em que nenhuma estrela brilhou no meu céu para ser doada a ninguém, e eu fui de recado direto para o aplicativo que é algo como falar com o Além. Um Além sem a criatividade dos filmes inspirados em Chico Xavier – necessário dizer. Nada de pessoas doces vestidas de camisolas brancas dispostas a resolver seus problemas e dando garantia de evolução espiritual. “Ora, direis…” estrelas ficam mudas para mim quando tentam me roubar, dar de esperto, ou mudam o caminho sem minha concordância.

Por falar em concordância, por sorte, nunca, até hoje, um ou uma que se mostrasse com disposição de discutir questões políticas comigo. A não ser um, que no carnaval de 2018, quando eu ia para o bloco As Raparigas de Chico toda no vermelho do batom a flor no cabelo, antes de entrar no carro, o dito cujo me olhou de cima a baixo, na hora em que um helicóptero sobrevoava uma comunidade próxima e soltou a sua idiotice: “A polícia está atrás de prender petistas.” Quem diria que tempos depois seriam tantas as idiotices a se ouvir toda hora e de tantos outros, que essa idioticizinha ficou lá apagada no tempo. Não cuidei das estrelas desse porque um amigo era quem estava usando o aplicativo. Ainda lhe dei uns “tabefes verbais” por outros assuntos que tentou no caminho, mas os amigos que iam comigo contornaram a situação.

Pois bem, enquanto não chegam os carros fantasmas, vou de uber, na lida com essa estranheza chamada gente, coisa que tento desde tempos de infância.