crédito: Hamza Nouasria

 As margens da alegria / sebos

Eu não consigo sublinhar livro. No entanto, é o que mais vi quando adquiri livro em sebo. E não deixa de ter seu encanto. Quem adota um livro usado, cuida de ter um universo ali, as marcas do leitor alheio. Aliás, um fato que narro aqui. Conheci muito os livros de um certo poeta no sebo que costumava visitar. Muitos livros de poemas, vendidos ou doados por ele, tinham essas marcas à margem. Geralmente uma exclamação feita a bic para um bom verso, duas para um ótimo verso, três para algo assombroso. É como se eu tivesse dois livros em um: o propriamente dito, e uma edição crítica. Tudo na margem. Em outros livros, comentários, notas, como se o leitor editasse ao seu gosto. Nada disso me causa irritação. Vou ao sebo com o gosto de adquirir livros com passado, com camadas de sua história de uso.

Ainda assim, é uma alegria adquirir estes livros com histórias em seus subúrbios da memória. Dedicatórias, rabiscos, sublinhados. Uma página dobrada. Um marcador de página ou a múmia de uma flor. Por isso, guardo com louvor essa alegria dos sebos que me fizeram um caminhante, um andarilho pelo papel. (Para os sebos que não dão acesso ao acervo, colocando uma barreira/balcão com terminais eletrônicos para buscar livros, meu sincero repúdio – não é em espírito um sebo autêntico: é uma loja de departamento de usados).

 

Sebo raiz / sebo nutella

Sou fã de sebo raiz. Tenho um pé atrás com sebo nutella. Vou ilustrar: já visitei muitos sebos onde a gente é meio que o explorador com os próprios pés. Tem um mundo oculto para desbravar e parece que o vendedor deixa a gente solto no capinzal de livros. Os preços são na medida certa. E as obras raras são reconhecidas de ambas as partes. Ninguém vai te enganar. Este é o sebo raiz.

O sebo nutella pode ter sua dignidade, mas tem ar de vitrine de loja, um quê de querer ser mais do que é. A mão do vendedor parece guiar a mão da gente, querendo ou não. E tem sebo, desses enormes, que tudo tem que ser no balcão informatizado. Nada de ir ao acervo (tenho um caso específico). Os preços parecem indexados ao dólar. Livro usado banca-se como novo. Geralmente o ponto fraco é o acervo. Obras medianas ou as que frequentam certas listas dos mais vendidos. Boa literatura, de cavar fundo na alma, passa longe.

Há uma gradação aí. Alguns se misturam. Não sou contra nenhum dos dois – a existência e a essência às vezes confluem. Mas eu entro com gosto naquele sebo que o dono tem paixão por livros, sabe receber, cuida do acervo como se fosse a sua alma. Esse sebo me conquista.

 

Coisas que me atraem em sebos / uma lista

 

  1. Uma desorganização meticulosa.
  2. Cheiro de livros velhos.
  3. A possibilidade de encontrar um livro raro.
  4. Pequenas histórias de amor nas dedicatórias.
  5. Descobrir como construíram a pequena babel em forma de estantes.
  6. Leitores que puxam conversas.
  7. Ginástica localizada (ou como agachar para ler aquela lombada quase apagada)
  8. A maneira como eles, os sebos, são vistos (como clareiras coloridas na selva da cidade)
  9. Alguns com nomes bem criativos: Desculpe o pó, O gato que lê, etc.
  10. Eu falei de livros? Sim, livros. Livros me atraem.
  11. A imensa vontade de querer materializar uma xícara de café.
  12. Sua capacidade de se tornar labirinto.
  13. A criatividade de seções inéditas: autores europeus que não ganharam o nobel.
  14. Um certo ar displicente, desleixado.
  15. A súplica de alguns livros em um mantra surdo: você vai me levar, você vai me levar…