por Priscila Werton e Imtiaz Mahmud

Em 1971, a Guerra de Libertação de Bangladesh, um conflito armado liderado por nacionalistas e um grupo de autodeterminação, resultou na independência de Bangladesh (na época, Paquistão Oriental) do Paquistão (Paquistão Ocidental).

Quando Bangladesh ainda fazia parte de Bengala sob o domínio britânico, Sheikh Mujibur Rahman (Mujib) surgiu como um importante ativista estudantil, liderando a busca pela independência do país. Ele atuou como presidente e primeiro-ministro, representando uma facção liberal, secular e de esquerda (nacionalismo, socialismo, democracia e secularismo) que evoluiu para a Liga Awami. Seus legados incluem a Constituição secular de Bangladesh e a transformação do aparato estatal do Paquistão Oriental em um estado totalmente independente de Bangladesh. O legado de Mujib é controverso entre os bengaleses devido a questões como má administração econômica, violações dos direitos humanos e autoritarismo. A Liga Awami é criticada por promover um culto à personalidade de Mujib.

Em 1975, Mujib foi assassinado junto com a maior parte de sua família durante um golpe militar realizado por alguns jovens oficiais renegados do exército. As únicas sobreviventes da família de Mujib foram suas filhas, Sheikh Hasina e Sheikh Rehana, que estavam na Alemanha na época. Após o golpe, elas foram impedidas de retornar a Bangladesh e receberam asilo na Índia. Foi estabelecido um regime militar. Sheikh Hasina viveu em Nova Délhi no exílio até 1981 e, em 1996, foi eleita primeira-ministra de Bangladesh. Posteriormente, foi aberto um processo de assassinato nos tribunais de Bangladesh para vingar a morte de seu pai. Vários dos quinze assassinos, inclusive o líder do golpe, foram presos e levados a julgamento. Alguns se tornaram fugitivos, e a maioria deles recebeu a pena de morte.

Após um primeiro mandato polêmico em 1996-2001, durante a crise política de 2006-2008, Hasina foi detida por acusações de extorsão (em 2007) e venceu as eleições de 2008. Em 2014, ela foi reeleita para um terceiro mandato em uma eleição boicotada pelo Partido Nacionalista de Bangladesh (sua principal oposição) e criticada por internacionalmente. Hasina conquistou um quarto mandato nas conflituosas eleições de 2018 e um quinto mandato em 2024, marcado pela violência e amplamente considerado fraudulento e manipulado. Seu governo foi marcado pela má gestão econômica e pela corrupção desenfreada, o que levou ao aumento da dívida externa, à inflação crescente, ao desemprego entre os jovens e a irregularidades bancárias.

O governo da família Mujib usou agendas de esquerda, como independência política e secularismo, como táticas para se manter no poder – um governo ditatorial disfarçado de democrático para manipular a população e fazer acordos políticos a fim de eliminar a oposição. Hasina se solidificou no poder com delírios narcisistas, manipulando a fé e culpando o povo pelas dificuldades sociais do país.

História Recente

Há uma grande demanda por empregos públicos em Bangladesh. Devido ao aumento das taxas de desemprego, os cargos do governo oferecem à população melhores salários, benefícios e seguridade social. Após a Guerra da Independência, o pai de Hasina instituiu um sistema de cotas para incluir freedom fighters (heróis de guerra), pessoas de distritos pouco representados e mulheres afetadas pela guerra no Serviço Civil de Bangladesh. Esse sistema passou por várias modificações e atualmente é o estopim da revolução estudantil.

Naquela época, ter um sistema de cotas era uma decisão justa e amplamente vista como uma ação afirmativa, pois visava incluir forças pró-independência e pessoas marginalizadas em cargos públicos e reconstruir o país. O sistema tem como objetivo a justiça e a correção de disparidades históricas, assim como as cotas em outros países, como o Brasil. Muitos heróis de guerra vieram de comunidades marginalizadas sem acesso a condições sociais que lhes permitissem obter empregos no governo por meritocracia.

Mas esse sistema de cotas precisou ser alterado. Com o passar do tempo, o número de veteranos de guerra que reivindicavam empregos com as cotas diminuiu, de modo que o sistema de cotas foi estendido aos filhos deles em 1997. Também foi estendido a todas as mulheres, já que a cota para as mulheres afetadas pela guerra não foi reivindicada em 1985; pessoas com deficiência; grupos minoritários, como Indígenas (que não são reconhecidos como Indígenas pelo governo); e Hijras (hermafroditas, eunucos ou mulheres transgêneros. O governo de Bangladesh não reconhece toda a comunidade LGBT). Até aentão, o sistema de cotas parece justo, mas Hasina estendeu o sistema de cotas aos netos de veteranos de guerra, a terceira geração de descendentes de freedom fighters.

Em 2018, os estudantes organizaram um movimento pacífico para reformar o sistema de cotas, mas não abolí-lo. A polícia reagiu violentamente contra os manifestantes e, após o confronto, Hasina aboliu o sistema de cotas em 2018, o que entrou em vigor em 2020. Os descendentes dos freedom fighters entraram com uma ação na Suprema Corte contra a decisão tomada por Hasina e reivindicaram seus direitos às cotas. A Suprema Corte reconheceu a abolição do sistema de cotas como ilegal, restabelecendo-o em 2024.

Em junho de 2024, os estudantes organizaram novamente um protesto pacífico pedindo a reforma do sistema de cotas, a July Revolution. Hasina e seus ministros começaram a fazer declarações provocativas aos estudantes, o que fez com que a ala estudantil pró-governo, a Liga Chatro, atacasse o movimento pacífico de reforma das cotas. Houve um confronto entre os manifestantes e a Liga Chatro. Para controlar a situação, o governo de Hasina decidiu reprimir os manifestantes. Começou a perseguir os estudantes e os coordenadores do protesto, o que resultou em centenas de mortes e desaparecimentos forçados. O Ministro da Informação de Hasina acusou os estudantes de serem viciados em drogas e terroristas e negou qualquer violência ou morte. Após a repressão violenta contra os estudantes de universidades públicas, os estudantes de universidades particulares que não haviam participado do protesto até 18 de julho decidiram apoiar os estudantes de escolas públicas, e o movimento cresceu.

O protesto começou em junho de 2024 em resposta ao fato de a Suprema Corte de Bangladesh ter restabelecido 56% de cotas no serviço público, sendo que 30% eram reservadas para os descendentes dos freedom fighters. Os alunos sentem que têm uma oportunidade limitada com base no mérito. A resposta ao restabelecimento do sistema de cotas para empregos no governo rapidamente se espalhou por todo o país, reunindo apoio civil devido à crescente insatisfação contra uma intervenção opressiva. A situação foi agravada por outras preocupações populares constantes, como a incapacidade do governo de administrar uma prolongada recessão econômica, relatos de corrupção desenfreada, violações de direitos humanos e a ausência de canais democráticos para iniciar mudanças.

O governo procurou reprimir os protestos fechando todas as instituições de ensino. Em seguida, a polícia e as forças armadas declararam toque de recolher e um blackout de conectividade móvel e de Internet sem precedentes, que isolou Bangladesh do resto do mundo. Em meados de julho, o governo de Bangladesh havia bloqueado as mídias sociais no país, incluindo Facebook, TikTok e WhatsApp, por mais de uma semana.

Apesar das restrições do toque de recolher, o movimento continuou e ampliou suas exigências incluindo a responsabilização pela violência, pedido de desculpas de Hasina e a renúncia dos ministros do governo. O uso de violência generalizada pelo governo contra o público transformou o protesto estudantil em uma revolta popular. Em 3 de agosto, o movimento transformou suas reivindicações em uma única: a renúncia da primeira-ministra Sheikh Hasina e de seu gabinete além da responsabilização pelas mortes, e convocou a desobediência civil em todo o país. Enquanto isso, o governo nega que suas forças de segurança tenham matado qualquer manifestante.

Até 2 de agosto, havia 215 mortes confirmadas, mais de 20.000 feridos e mais de 11.000 presos em várias partes do país. De acordo com o Ministério da Saúde de Bangladesh, mais de 1.000 pessoas foram mortas durante o protesto. A UNICEF informou que pelo menos 32 crianças foram mortas durante os protestos de julho, e muitas outras ficaram feridas e foram detidas. A determinação do número exato de mortes tem sido difícil porque o governo supostamente restringiu os hospitais de compartilhar informações com a mídia e várias pessoas com ferimentos por arma de fogo foram enterradas sem identificação.

O dia 4 de agosto foi o mais letal. Os ativistas pró-governo e suas alas juvenis e estudantis lançaram, de forma coordenada, um ataque brutal contra os manifestantes, matando mais de 100 pessoas. Posteriormente, os manifestantes convocaram uma longa marcha em Daca para forçar Hasina a renunciar. Em 5 de agosto, centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas e começaram a marchar em direção a Gana Baban, a residência oficial da Primeira-Ministra; sob pressão, Hasina renunciou e fugiu para a Índia com sua irmã.

Conexões com as eleições de 2024 no Brasil:

Ao contrário do que ocorre em Bangladesh, a esquerda no Brasil não é uma ditadura disfarçada. Ele luta para garantir os direitos e a justiça para os cidadãos. A pauta não é manter a esquerda no poder, eliminar a oposição ou responder violentamente a protestos generalizados. A esquerda brasileira é um movimento para a mudança social e o legítimo empoderamento do povo. Embora muitas vezes criticada por não ser unida, a esquerda no Brasil é um movimento heterogêneo que incentiva o pensamento crítico e a discussão e respeita as oposições políticas que convergem para a melhoria da nação. Não se trata de uma questão de desunião do movimento, mas de seu caráter democrático. Movimentos políticos com pensamento homogêneo baseiam-se na manipulação e no silenciamento do pensamento crítico, levando naturalmente a sociedade a um caminho ditatorial, sem espaço para a divergência.

Embora o movimento de esquerda no Brasil tenha um caráter feminista quando visa à igualdade de direitos (deveria ser equidade de direitos, mas ainda não chegou lá) para homens e mulheres, ter mulheres no poder só porque são mulheres não resolve as coisas. Embora eu seja 100% a favor do aumento da participação política das mulheres no Brasil, as mulheres eleitas precisam estar comprometidas com pautas feministas que defendam direitos e ideais socioeconômicos no país. Votar em uma mulher só porque ela é mulher pode levar a um viés religioso e ideológico ainda pior dentro do governo. As mulheres no poder podem governar contra as causas sociais, como visto em Bangladesh.

Um movimento pacífico liderado por estudantes está remodelando o destino de Bangladesh. Os estudantes estão liderando a luta pelos direitos humanos no país. A ciência e a educação capacitaram os estudantes a exigir um país melhor. Que esse exemplo inspire o Brasil.