
Por: Maria do Desterro Leiros da Costa
A presença de indigentes, famintos, sujos e doentes, jazendo pelas ruas como espectros, é um atestado de fracasso para qualquer sociedade sob os pontos de vista: humano, religioso e filosófico. A realidade da maioria dos nossos centros urbanos reflete um esgarçamento do tecido social com enfraquecimento dos sensos de solidariedade, ética e direitos humanos. Para coexistir com a miséria das ruas, muitos desenvolvem um processo cotidiano de dessensibilização que pode escalar para a anestesia empática, indiferença, normatização deste estado de coisas, ou ainda para soluções tão estranhas como a elaboração de um projeto de lei que pode criminalizar quem tentar mitigar a fome e a indigência social que se espalhada pelas ruas. Isto foi o que aconteceu dia 26/06/24 na Câmara Municipal de São Paulo, onde foi aprovada, em primeira votação, um projeto de lei, da autoria do vereador Rubinho Nunes (do União Brasil) que prevê multa de R$ 17,6 mil para pessoas – físicas, ou jurídicas – que descumprirem os requisitos estabelecidos neste projeto para a doação de alimentos às
pessoas em situação de rua. De acordo com esta legislação, prover alimentos, roupas,
cobertores e outros socorros a estas populações, sem a prévia chancela do município, poderia resultar na escandalosa multa acima.
É importante destacar que as iniciativas civis e religiosas que socorrem estas
pessoas, só acontecem porque os poderes públicos não cumprem devidamente o seu papel. É graças a estes voluntários que não tropeçamos em corpos pelas ruas das grandes cidades, mortos em decorrência de fome, frio, doenças e abandono.
Felizmente “o pulso ainda pulsa” e o referido projeto de lei causou protestos por todo o país. À primeira vista, muitos dirigiram sua indignação ao autor do projeto, como se este fosse um personagem isolado na empreitada criminalizatória. Olhando mais racionalmente, veremos que o vereador é um mero representante da parcela da sociedade que o elegeu em razão dos seus valores e propostas. Ou seja, ele está cumprindo sua agenda de campanha, caracterizada pela ausência de projetos competentes para os graves problemas sociais da cidade, particularmente a miséria resultante de um sistema secular de desigualdade social, discriminação e concentração de riqueza.
O projeto de lei do Sr. Rubinho Nunes cria condições para punir quem deixa suas famílias e seus interesses para levar esperança e algum senso de humanidade aos
desvalidos. Sua aprovação pela maioria dos vereadores paulistas é algo no mínimo destoante, numa sociedade onde a maioria se identifica como cristã. Sabemos que a história de Jesus Cristo não condiz com a indiferença em relação ao próximo; sua opção, ao lado dos desassistidos pelos poderes romano e judaico do seu tempo foi uma das suas principais bandeiras.
O vereador Rubinho não ruborizou na câmara do maior e mais rico município do Brasil quando levou um projeto que, além de não apresentar qualquer proposta de combate à indigência das ruas, penaliza a sociedade civil criando gargalos burocráticos para a prática da beneficência e ainda ameaça com multa altíssima quem não tiver toda a papelada nas mãos… Curiosamente este vereador empalideceu após a repercussão negativa à sua empreitada, postou nas suas redes que foi mal compreendido, não era bem assim…e suspendeu a tramitação do seu projeto de lei. Felizmente “o pulso ainda pulsa” e o manifesto da sociedade contra este iníquo projeto de lei, fez o seu autor voltar atrás.
Diante de tudo isso, uma conjectura me ocorre: se a população não tivesse se
posicionado contra este projeto, até Jesus seria passível de multa se realizasse em
nossos dias a multiplicação dos pães e peixes para alimentar os famintos São Paulo.
Concluo lembrando o ensinamento a respeito dos seus escolhidos no Juízo Final, quando
indagado por estes sobre o porquê de tê-los selecionado, respondeu: “porque tive fome, e
destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber, estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver” (Evangelho Segundo Mateus 25:35,36)
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Maria do Desterro Leiros da Costa.
Neurologista. CRM(PB) 2649.
Mestrado e Doutorado em Neurologia pela Faculdade de Medicina da USP.
Profa. de Neuroanatomia Aplicada na UFPB (aposentada).
Membro da Coordenação do Projeto Lucas.

MULHERIO DAS LETRAS
Coletivo literário feminista que reúne escritoras, editoras, ilustradoras, pesquisadoras e livreiras, entre outras mulheres ligadas à cadeia criativa e produtiva do livro, no Brasil e no exterior, a fim de dar visibilidade, questionar e ampliar a participação de mulheres no cenário literário.