Foto de arquivo de 04/10/2019 do padre Júlio Lancellotti

Por: Maria do Desterro Leiros da Costa

A presença de indigentes, famintos, sujos e doentes, jazendo pelas ruas como espectros, é um atestado de fracasso para qualquer sociedade sob os pontos de vista: humano, religioso e filosófico. A realidade da maioria dos nossos centros urbanos reflete um esgarçamento do tecido social com enfraquecimento dos sensos de solidariedade, ética e direitos humanos. Para coexistir com a miséria das ruas, muitos desenvolvem um processo cotidiano de dessensibilização que pode escalar para a anestesia empática, indiferença, normatização deste estado de coisas, ou ainda para soluções tão estranhas como a elaboração de um projeto de lei que pode criminalizar quem tentar mitigar a fome e a indigência social que se espalhada pelas ruas. Isto foi o que aconteceu dia 26/06/24 na Câmara Municipal de São Paulo, onde foi aprovada, em primeira votação, um projeto de lei, da autoria do vereador Rubinho Nunes (do União Brasil) que prevê multa de R$ 17,6 mil para pessoas – físicas, ou jurídicas – que descumprirem os requisitos estabelecidos neste projeto para a doação de alimentos às
pessoas em situação de rua. De acordo com esta legislação, prover alimentos, roupas,
cobertores e outros socorros a estas populações, sem a prévia chancela do município, poderia resultar na escandalosa multa acima.

É importante destacar que as iniciativas civis e religiosas que socorrem estas
pessoas, só acontecem porque os poderes públicos não cumprem devidamente o seu papel. É graças a estes voluntários que não tropeçamos em corpos pelas ruas das grandes cidades, mortos em decorrência de fome, frio, doenças e abandono.

Felizmente “o pulso ainda pulsa” e o referido projeto de lei causou protestos por todo o país. À primeira vista, muitos dirigiram sua indignação ao autor do projeto, como se este fosse um personagem isolado na empreitada criminalizatória. Olhando mais racionalmente, veremos que o vereador é um mero representante da parcela da sociedade que o elegeu em razão dos seus valores e propostas. Ou seja, ele está cumprindo sua agenda de campanha, caracterizada pela ausência de projetos competentes para os graves problemas sociais da cidade, particularmente a miséria resultante de um sistema secular de desigualdade social, discriminação e concentração de riqueza.

O projeto de lei do Sr. Rubinho Nunes cria condições para punir quem deixa suas famílias e seus interesses para levar esperança e algum senso de humanidade aos
desvalidos. Sua aprovação pela maioria dos vereadores paulistas é algo no mínimo destoante, numa sociedade onde a maioria se identifica como cristã. Sabemos que a história de Jesus Cristo não condiz com a indiferença em relação ao próximo; sua opção, ao lado dos desassistidos pelos poderes romano e judaico do seu tempo foi uma das suas principais bandeiras.

O vereador Rubinho não ruborizou na câmara do maior e mais rico município do Brasil quando levou um projeto que, além de não apresentar qualquer proposta de combate à indigência das ruas, penaliza a sociedade civil criando gargalos burocráticos para a prática da beneficência e ainda ameaça com multa altíssima quem não tiver toda a papelada nas mãos… Curiosamente este vereador empalideceu após a repercussão negativa à sua empreitada, postou nas suas redes que foi mal compreendido, não era bem assim…e suspendeu a tramitação do seu projeto de lei. Felizmente “o pulso ainda pulsa” e o manifesto da sociedade contra este iníquo projeto de lei, fez o seu autor voltar atrás.

Diante de tudo isso, uma conjectura me ocorre: se a população não tivesse se
posicionado contra este projeto, até Jesus seria passível de multa se realizasse em
nossos dias a multiplicação dos pães e peixes para alimentar os famintos São Paulo.
Concluo lembrando o ensinamento a respeito dos seus escolhidos no Juízo Final, quando
indagado por estes sobre o porquê de tê-los selecionado, respondeu: “porque tive fome, e
destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber, estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver” (Evangelho Segundo Mateus 25:35,36)

 

*******************************************

Maria do Desterro Leiros da Costa.
Neurologista. CRM(PB) 2649.
Mestrado e Doutorado em Neurologia pela Faculdade de Medicina da USP.
Profa. de Neuroanatomia Aplicada na UFPB (aposentada).
Membro da Coordenação do Projeto Lucas.