Arte: Waleska Asfora

Cinco anos, todas as tardes de quarta-feira, sentando na mesma poltrona e falando quase sempre sobre as mesmas coisas. O casamento, o trabalho, o enfado dos domingos, os terrores noturnos, a educação dos filhos, a paixão platônica por Carmilla.

Todas as quartas-feiras, saio daquela sala jurando que nunca mais. Todas as quartas-feiras, fico por aqui no Café da esquina tentando esquecer da vida. Me desse um apagão, e eu saísse por essas ruas, sem norte, sem eu algum, porque esse eu não me serve, nunca me serviu. Mas não acontece essa mágica ou milagre. Resta sair tentando uns arremedos para enfrentar os dias.

Cinco anos, e hoje ela vem se aprofundar em porques que vão levar a lugar nenhum. O que tem a ver não amar a minha mulher com o ódio que tenho a carnaval? Vem me falar em buscas, perdas, transferências. Pago caro para conversar com essa inconsequente todas as quartas-feiras, e lá se vão cinco anos. Se volto, é porque não tenho mesmo com quem conversar. Com ela eu posso falar tudo e saio dali certo de que meu palavrório fica trancado naquelas quatro paredes. Ou talvez não. Quem garante se quando fecha a porta e se despede com aquele sorriso de “até a próxima”, não respire aliviada? Quem sabe se a noite não comenta com o marido que foi mais uma quarta em que teve que aturar o chato que há cinco anos gira em torno dos mesmos problemas?

Mas, hoje foi a última vez. Chega! O aborrecimento me ferve nas veias, mais quente que esse café que desce rasgando a garganta. Uma hora falando sobre carnaval. Aquela cara de quem coloca a última peça no quebra-cabeça. Pois que fique ela pensando que na próxima quarta vai embaralhar as peças e começar tudo de novo, agora em um jogo mais rápido porque já sabe a conclusão.

Diabo tinha ela de puxar de uma profundeza de mim, histórias de carnavais passados, dos tempos em que eu gostava da festa? Há tanto havia me libertado dessas lembranças. Agora me vem às ventas o cheiro do perfume adocicado. E como se tivesse transbordado dessas mesmas profundezas, me aparece aquela mulher. Sinto sua pele, seu batom, seus lábios carnudos, o cetim de sua fantasia, o mistério. Não ter visto seu rosto foi meu inferno, estar preso em seus olhos escuros foi o meu fim. Pior ainda é não saber se foi nas ladeiras de Olinda, ou se foi nas Muriçocas do Miramar, bem ali na hora em que o cordão dos estandartes chega a Avenida. Aquele momento sempre me deixava embriagado de emoção, e as ladeiras de Olinda sempre me deixavam embriagado de cerveja, loló e o cheiro de mijo. Nunca consegui lembrar exatamente onde aconteceu o fato.

Passei dez anos tentando encontrar aquela vampira. Nem bem acordava da ressaca do Cafuçu e já estava a caminho de Olinda. Dez anos beijando todas as vampiras que encontrava em meio ao frevo, e nunca era aquela boca. Dez anos ao fim de todo carnaval, completametamente bêbado, aos prantos, sentado em uma beira de calçada, cantando a música de Alceu: “mordeu, mordeu, quase que me devora, logo foi embora, fiquei sem saber o seu telefone, seu nome, e agora? Vampira cadê você?” Um frevinho brincalhão que retratava meu drama. Mais de dez anos com ódio de Alceu, daquela vozinha que ele faz ao final do frevo, dizendo “vampiraaa”, parecendo rir de minha desgraça.

Os dentes em meu pescoço, silenciando o frevo em meus ouvidos, alvoroçando meu corpo. Aquela mulher roubou minha alma. Até que me apareceu Carmelita – colega de trabalho, sensata, séria, muito católica, prometendo, sem nada dizer, me levar para uma nova vida. No altar, menti sobre amor eterno. Amor, nem lhe tenho. Só queria a paz com que me acenava, desde o primeiro bom dia. Logo no começo do namoro jurei a ela e a mim mesmo que carnaval nunca mais.

Fiz promessa, deixei de beber e de fumar. Com o tempo, a vida foi ficando toda arrumada: uma casa com tudo limpo e no lugar certo. Até aparecer Carmilla, ou desaparecer, melhor dizendo. A mulher vestida de preto, com olhos vermelhos, que quase todas as noites invadia os meus sonhos. Sonhos maravilhosos, não fosse eu falar seu nome na hora em que encostava os lábios em meu pescoço. E sempre acordar nesse exato momento com Carmelita me sacolejando, ainda tendo que mentir que era o seu nome que eu sussurrava. Passou a rezar um rosário apressado todas as noites,sentada na nossa cama, com a luz acesa. Vai ver foi isso. Nunca mais sonhei.

A vida foi ficando essa chatice, variando só em problemas. Mas ia tudo certo, bastando não mexer em vespeiro, não remexer passado, não acordar sonhos, não ter saudades de carnaval… Eu odeio carnaval!

E injustamente hoje é “quarta-feira de fogo”. Daqui a duas horas, o povo começa a chegar a Avenida Epitácio: “abram alas que elas vão voar.” Vou dispensar esse terceiro café e pedir uma cachaça. Preciso esquecer. Ou preciso lembrar, já nem sei.

(…)

“Vampira cadê você?”