Um romance de 346 páginas publicado pela Editora Urutau nos chama atenção pela diversidade de leituras que oferece. Também pelo fato de um livro escrito à quatro mãos não ser assim tão comum. Por esta razão destaco inicialmente o que me parece vital: a autonomia compartilhada do texto. Com todas as dificuldades e enfrentamentos que isso, certamente, possa representar. Todavia, em nenhum momento identificamos dispersões ou divergências no ritmo da escrita.

Já nas primeiras páginas Didier Guigue e Helayne Cristine nos lembram que a capital da Paraíba há muito tempo deixou de ser aquela cidadezinha provinciana e bucólica entre Natal e Recife. A cidade das Acácias já não mais existe.  Foi substituída por outra para continuar sendo ela mesma. O livro nos mostra o quanto de cosmopolitismo já foi plantado numa cidade que, pela qualidade de vida, pelas belezas naturais e arquitetônicas, atrai habitantes dos mais diversos rincões, continentes e culturas.

Também por isso João Pessoa tem hoje uma cena cultural potente em todas as áreas e sua literatura está cada vez mais fortalecida e visível nacionalmente. O Brasil atual aponta seus holofotes para a terra de Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, Maria Valéria Rezende e Sérgio de Castro Pinto. Se o romance “Entrevamento”, de Antônio Mariano se espalha pelos becos decifrando as linguagens e comportamentos que estabelecem as âncoras do feminicídio, “O som de quem te ama” nos convida a despir a hipocrisia patriarcal que minimiza a poligamia, mas condena o poliamor.

O romance escrito por Didier Guigue e Helayne Cristine nos surpreende por diversos caminhos. Não apenas pela escrita bem elaborada de quem decidiu estrear num alto padrão, mas também pela migração de Didier e Helayne da música, onde há um grande reconhecimento de ambos, para a literatura. Também não só pela interpenetração de linguagens que torna o romance ainda mais atraente, mas pelo que o livro nos oferece em termos de mergulho na sociologia das bolhas numa sociedade plenamente tribalizada. O livro é um espelho reverso das relações normatizadas e um respiradouro oferecido pelas suas violações. Uma ode ao amor e seus litígios, sobretudo.

Enfim, um livro para pensarmos sobre o que há de diversidade nas relações afetivas que ainda estão um tanto submersas, silenciadas pelos fundamentalismos. Um livro plural que abandona a ideia monotemática. Abraça as transversalidades que tratam dos afetos, mas também das maiores e menores perplexidades da existência. A exemplo do que encontramos já no começo da trama, quando o protagonista traz para a ribalta do texto essa estranha mania de amar literatura. Especialmente diante dos malabarismos midiáticos do mercado internacional do livro. Essa “trama” está posta na página 10 quando Paul (o protagonista) se mostra arrependido de ter cedido às pressões midiáticas para ler “Cinquenta Tons de Cinza” e faz um contraponto demonstrando a fluência natural na leitura do americano Philipe Roth. Afinal, a melhor literatura é aquela que nos surpreende e nos abraça com seus tentáculos.

Esta foi a primeira observação que fiz de um livro policêntrico que a todo instante nos descoloca diante de dilemas relativamente comuns, mas sempre camuflados. A exemplo do professor de reconhecido comportamento ético que dizia não querer envolvimento com alunas e, subitamente, se vê envolvido. Assim ele vai descobrindo o amor como um parque de armadilhas. Também nos convida a pensar sobre o mito da juventude nas relações amorosas, onde as diferenças de idade determinam tantas decisões e recusas nem sempre acertadas.

Eis um romance que nos remete ao que dizem os grandes pensadores da literatura universal. Como Umberto Eco, por exemplo. Para ele: “a leitura de obras literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade da interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica dos nossos dias, para a qual de uma obra literária pode-se fazer o que se queira, nela lendo aquilo que nossos mais incontroláveis impulsos nos sugerirem. Não é verdade. As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades, da linguagem da vida.”

Eis que o pensador italiano nos oferece uma bússola para percorrer o romance de Didier e Helayne. Estamos diante de um livro que traz para o centro da ciranda uma contraposição nas diversas formas de amor. Mais explicitamente, sobre o exercício de amar fora dos padrões. Mesmo com todos os inevitáveis riscos. Com todas as tempestades que as calmarias do amor oferecem. Uma história escrita com sotaques de autoficção e cruzamentos autobiográficos no estilo Simone de Beauvoir em “A cerimônia do adeus”. Falo das dores e dos prazeres multiplicados, mas quero dizer bem mais que isso. A cerimônia do adeus não passava do enredo ritualístico de uma pequena despedida.

Didier e Helayne nos oferecem uma miríade de olhares para a complexidade da nossa condição de gente. Tudo inserido nas transformações naturais inscritas nessa modernidade que acende a chama de uma revolução na medida que também sabe esconder, atocaiar, impedir o que não é compreendido. A exemplo da sexualização de determinados corpos quando o preconceito veste violentamente a pele do desejo. Eis a narrativa fragmentada sobre a qual o jornalista e escritor Tiago Germano se refere na orelha, onde fala de um livro “que tem a coragem de enfrentar perspectivas conservadoras a respeito de relações supostamente abusivas, numa época de reacionarismos em que a arte, nossa única arma contra o ódio, não pode se prestar a ser inofensiva.”