Imagem: Adobe Stock

Na segunda-feira Tom K partiu. Hoje, sexta-feira, Dona Dadá. Semana passada partiu Ricardo Anisio. Há alguns meses Gil Sabino também se foi. Há alguns anos, Antonio Cadengue, Cristovan Tadeu, minha mãe, meus irmãos, outros amigos e conhecidos, o mundo vai ficando vazio dos afetos vividos, mas não passados, porque parece que o tempo funciona em nós em duas dimensões, uma física e outra emocional. Aquela, os dias que se esvaem levam consigo o corpo mutante. O que eu sou hoje não é o mesmo que fui há anos, nem mesmo o que fui semana passada ou ontem. Algo mudou em mim e em ti. Preste atenção e verás. Na dimensão emocional, então, o passado não passa, é um eterno presente, senão nas lembranças, ao menos nos sentimentos que permanecem mesmo que não estejamos conscientes de sua permanência.

Quando morre um amigo tenho para mim que morre em mim um pouco da minha própria história . É uma peça perdida do meu jogo pessoal. Uma casa que fica vazia no meu tabuleiro dimensional. Um sentimento que perde o seu referencial, e assim morro eu também aos poucos e vou ficando só nesse mundo sem sentido aparente. E eu fico me perguntando do mesmo modo que Ninia, a personagem da terceira peça que escrevi, “Não Se Incomode Pelo Carnaval”, quando eu ainda muito jovem: de que matéria é feito o tempo?

O tempo e o seu mistério. O tempo é a grande questão filosófica que atravessa as nossas vidas. Na física, o tempo é a medida da quarta dimensão. Altura, largura e comprimento são as três dimensões do espaço, e a elas soma-se o tempo. Mas as teorias indicam que existem em nossas vidas, que são em última instância o nosso espaço pessoal, outras dimensões, tais como a física, a emocional, a intelectual, a afetiva, urdindo um invisível tecido que nos compõe, um tecido que tenho eu para mim que é rompido, corroído, partido quando parte alguém que sendo ela mesma outra pessoa, outra dimensão em si, em algum ponto da nossa história os fios com que tecemos as nossas existências se emaranharam, de tal modo que acabamos por nos pertencer mutuamente, e assim formamos um novelo, uma outra dimensão do tempo, a do ser e do estar. Eu sou eu e sou você, e assim estamos conectados uns aos outros, nós nos pertencemos. Para o bem ou para o mal.

Mas pertencemos à natureza também. Somos parte deste todo. Não a mais importante. Apenas uma parte. Em nossa prepotência queremos ser a parte nobre da natureza, mas é bom lembrar que homens e ratos se equivalem. Até mesmo biologicamente. O remédio que você toma para o seu bem estar foi provavelmente testado no organismo de um rato. Nada nos faz superior. O tecido que compõe a nossa existência compõe também a existência de outros seres. Talvez o que nos diferencie – talvez! – seja a nossa capacidade de abstrair as coisas, a nossa capacidade para pensar. Mas quem garante que ratos não tenham pensamentos e sentimentos? E que sofram e sintam de igual maneira a morte de outrem? E ao pensar ou sentir o fim de alguém, especialmente alguém a quem amamos, ou nos relacionamos em algum momento das nossas existências, estaremos fatalmente diante do grande abismo. Tenho trabalhado em mim para não sentir medo da morte, especialmente da minha própria morte. Faz algum tempo, no meio de uma festa, por conta de uma súbita queda de pressão, desmaiei, e foi a primeira, e até agora a única vez que isso aconteceu comigo. Uma súbita e rápida morte. Quando acordei, tive a certeza de que morrer não dói. É um apagar de luzes. É um mergulho no nada, é talvez romper o tecido do tempo, ao menos do tempo da consciência. Então, eu me lembrei dos ensinamentos de Epicuro, para quem a morte não nos concerne, pois enquanto existimos não existe a morte, e quando morrermos não mais existiremos. O que nos pertence é a vida. E os amigos, e os prazeres que juntos formos capazes de obter. E nem este corpo que sou eu me pertence, pois pertence sim à natureza. O que me pertence é a saudade e as lembranças que ficam em mim. Costumamos dizer para os que partem que vá em paz, mas de paz quem precisa somos os que ainda estamos aqui. Paz e prazer, pro dia nascer feliz.

prazer, pro dia nascer feliz.