“Quando eu ando assim meio ‘down’, vou pra Porto e, bah, trilegal…” Este verso da música “Deu Pra Ti”, de KLeiton e Kledir, eu tenho em mente desde o início dos anos 80. Música linda, cheia de expressões coloquiais e que homenageia a cidade dos compositores. A Geografia não foi esquecida e um dos versos da canção termina com a expressão “paralelo trinta” – uma alusão à linha geográfica imaginária que corta a capital gaúcha. Mas a Geografia e seu clima aprontaram com a discreta e, ao mesmo tempo, cosmopolita e desenvolvida Porto Alegre, com seus quase 1,5 milhão de habitantes, fazendo-os passar pela amarga experiência e privações de uma “enchente” sem precedentes.
Bem, se “Poa” – como dizem carinhosamente seus habitantes – está localizada na altura do paralelo trinta, significa também que se localiza na faixa subtropical do planeta e isso quer dizer que a cidade e seu entorno têm uma boa distribuição dos seus 1.600 mm de chuvas anuais ao longo de todos os meses do ano. Isso não seria problema, pelo contrário. Com seu mês mais chuvoso, outubro, apresentando média pluviométrica de 180mm e o menos chuvoso, maio, pois é, maio, com pluviosidade média de apenas 110 mm, Porto Alegre apresenta um quadro pluviométrico estável e regular sob esse aspecto. Mas o que houve?
Em se falando de clima o que mais temos percebido é justamente a imprevisibilidade e irregularidade de alguns eventos, como chuvas torrenciais e volumosas em curto período de tempo, furacões mais intensos, fortes nevascas e calor excessivo em várias regiões do globo. E isso aconteceu agora no Rio Grande do Sul. Ironicamente, maio é o mês de menor pluviosidade na área metropolitana de Porto Alegre e foi justamente este mês que surpreendeu a todos com volumes de chuvas muito acima da média em poucos dias.
Trezentos ou quatrocentos milímetros de chuva em 10 dias “fazem bastante água”, mas não o suficiente para alagar e manter alagada, pelo triplo desse tempo, uma cidade topograficamente bem localizada e bem drenada – o que, infelizmente, não é o caso de Porto Alegre. Aquela cidade e sua área metropolitana estão situadas numa planície pouco acima do nível do mar, às margens do rio/lago Guaíba, que tem como tributários rios caudalosos como o Taquari, Pardo, Gravataí e rio dos Sinos. Esses rios nascem na face sul da Serra Gaúcha e na área central do estado, convergindo todos para o Guaíba, em cujas margens fica a capital. O lago Guaíba, por sua vez, escoa lentamente para a Lagoa dos Patos, que se liga ao oceano por um estreito canal no extremo sul. No entanto, o nível e fluxo da Lagoa dos Patos depende de um Oceano Atlântico cada vez mais “alto”, mal humorado, de ressaca, mesmo, e que represa lagoa, lagos e rios, dificultando o escoamento das águas. Toda essa realidade e cenário tornaram Porto Alegre numa grande área de risco.
Mas, e a capital dos gaúchos nasceu no lugar errado? Não é bem assim. Nasceu no lugar certo, mas em outro tempo. Foram poucos os eventos desse tipo ali que se tem registro. Todavia, Porto Alegre e arredores estiveram sempre perto desse limite de inundação devido à sua baixa altitude. Some-se a isso sua expansão urbana, ocupações irregulares das margens, ausência de mata ciliar nos rios e um clima cujos extremos de eventos se manifestam cada vez com mais frequência e maior intensidade. Não é apenas a localização e não foi apenas a pluviosidade, mas um conjunto de fatores, onde o elemento humano também é parte, que resultou na tragédia que ora assistimos. E o pior é que a previsão mais otimista aponta para retorno do Guaíba ao seu nível normal em apenas 30 dias, podendo se estender até 50 dias. Para a normalização completa de todas as atividades nas cidades atingidas ainda não se tem uma data, podendo levar meses. Outras capitais brasileiras, como Belém, São Luís e Recife também apresentam riscos de alagamentos no período chuvoso – bastando que chova de forma concentrada em pouco tempo – mas de forma menos comprometedora, pelo menos até aqui. Poucos lugares no mundo estão preparados para as ameaças que representam os extremos climáticos de um planeta que perdeu sua estabilidade e cujo clima se aproxima da linha do “não retorno”. É a conta da exploração dos recursos naturais de forma não sustentável chegando.
É pouco provável que aquela dupla gaúcha da MPB leia esse artigo. Ainda assim, a eles deixo a minha solidariedade e que, como todos os porto-alegrenses, voltem logo a ter motivos pra sonhar e cantar seu lugar: “Que saudade da Redenção, do Fogaça e do Falcão, coisas de magia, sei lá… paralelo trinta… tchê… tchê… d’eu pra ti…”
Dermival Moreira
É bancário aposentado, com Licenciatura em Geografia na UFPE e é autor de “Identidade e Realidade – artigos e crônicas”.