foto: Adriano Franco

Finalmente! Depois de uma espera de dez anos! − Dez nada… vinte e cinco anos: desde seus quinze anos tendo de cuidar e aturar aquele velho insuportável, um trambolho sem mulher, filhos ou irmãos que cuidassem dele. Foi por isso mesmo que o pai de Guilherme, simples escriturário, convidou para ser seu padrinho o chefe, magistrado de altas cortes, rico e sovina. O afilhado seria, sem dúvida, o herdeiro e isso valia todos os aborrecimentos que tivesse de aturar até a morte do velho. Essa esperança pareceu confirmada no dia em que o pai teve de acompanhar o chefe a um cartório para assinar um testamento.

Quando o juiz bateu as botas, a decepção: o testamento só poderia ser aberto dez anos depois de sua morte. Pelo menos havia uma garantia: o cartório comunicou que o testamenteiro seria ele, Guilherme.  Aturou, esperançoso, o cotidiano de funcionário subalterno, salário micho e timidez que o impedia de divertir-se como os outros.

Finalmente! Passados os dez anos, sim, o cartório chamou-o e, sim, ele era o único herdeiro do espólio do padrinho. Não, nada de propriedades, ações, imóveis ou dinheiro em banco. A herança estava toda concentrada em um valiosíssimo diamante incrustado num dente de ouro, conservado na boca do defunto. O testamento autorizava Guilherme a abrir o túmulo e resgatar o diamante.

O herdeiro, que até então não passava nem pelo portão do cemitério, teve de enfrentar o desafio. À custa de caixas de tranquilizantes e uma polpuda gorjeta para o coveiro, finalmente meteu-se cemitério adentro, por entre jazigos, campas, sepulcros, até encontrar o faustoso mausoléu do juiz, coberto por grossa lápide de mármore encimada por uma espantosa cópia do Moisés de Michelangelo, fundida em bronze. Foram três dias de esforço, canseira de aturar o coveiro, verdadeira água de chocalho a contar casos esdrúxulos de defuntos e fantasmas, e gorjetas para mais dois coveiros até conseguirem destapar a tumba.  Será que o padrinho tinha percebido que a aparente afeição do afilhado era apenas interesse material pela herança? Aquela dificuldade toda tinha sido planejada para castigá-lo? Não importava.

Agora, sim, estava rico.  Só faltava achar o diamante na bocarra da caveira, mas não era tão fácil. A cova era enorme. Levaram uma tarde inteira para esvaziar o jazigo da confusão que cobria o cadáver: imediatamente, sob a tampa do caixão, uma multidão de baratas nojentas, um monte de livros de poetas tristonhos e não se via do cadáver senão uma mão esquelética, curiosamente fechada, e apenas o dedo médio esticado. Seria um recado malcriado para o herdeiro?

Enfim, conseguiram esvaziar aquela tralha toda e deram com a caveira do defunto: inteiramente desdentada.

 

Maria Valéria Rezende – Clube do Conto da Paraíba – tema: Cemitério (e mais: trambolho, portão,  “água de chocalho”, caixão, poeta, barata, confusão…

MARIA VALÉRIA REZENDE nasceu em Santos, São Paulo, onde viveu até os 18 anos. Em 1965, entrou para a Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho. Dedicou-se sempre à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo e, a partir de 1972, no Nordeste, vivendo em Pernambuco e depois na Paraíba, no meio rural, até 1986 e, desde então, em João Pessoa, onde está até hoje.