É madrugada. 1h45 de uma sexta-feira qualquer. Ninguém está nem aí se estou só, se estou me sentindo só, se sinto alguma coisa… coisa qualquer. Sou uma Travesti. O que sinto não importa pra muita gente. Fato! Algumas poucas pessoas verbalizam o que sentem por mim, mas raramente é a vontade de estar comigo. Isso parece proibido, inoportuno. Esses dias recebi uma mensagem de um amigão que está morando em Salamanca, na Espanha, que dizia o seguinte: “Bom dia, Bia! Tenho te acompanhado nas redes sociais e nos pensamentos (sempre me lembro de vc como uma referência onipresente, uma referência de mulher intelectual e simples, completa e carente ao mesmo tempo, barroquista heheh)…”
Pois é! Apesar de ter ficado super feliz em receber essa mensagem, a palavra que não saiu da minha cabeça, que não sai da minha cabeça até agora, e que me perturba nessa noite insone é “carente”. Sim, sou carente, estou carente há muito tempo. Carente de desejo para além da foda, de lembrança para além do intelecto, de presença para além da farra… Carente! E meu amigo, lá da Espanha, através das redes sociais conseguiu sentir isso. Porém, quem está ao meu redor, parece que não! Não percebem que desejo para além da foda, que quero ser lembrada com saudade e com vontade de me querer por perto para além da foda, de me chamar para o estar junto, mesmo que não haja farra alguma, ou foda alguma.
Sei o que é ser objetificada, fetichicizada, transformada em coisa de desejo e curiosidade, brinquedo pra foda… Tiro proveito disso, é claro! É o que me resta… Afinal… a gente aprende a descartar quando se é descartável. Meus “amigos”, minhas “amigas” casam, batizam seus filhos e filhas, celebram conquistas, montam caravanas de viagem juntos, cruzeiros, planejam encontros… Geralmente eu vejo seus registros em redes sociais. “Lembramos de você!” – “Não me convidaram pra essa festa pobre que os homens armaram pra me convencer…” – Cazuza me traduz!
Carente! Por estar agora às 2h15 da madrugada falando comigo mesma através de um computador porque não tenho ninguém a quem possa recorrer nessa hora para falar da minha solidão, das minhas carências, da falta que faz ter alguém que queira estar comigo na madrugada.Muita gente se sente só no mundo, carente… Fato! Mas a solidão de uma Travesti é maior porque vem recheada de uma série de outras coisas que só as pessoas dissidentes compartilham: a objetificação, o estranhamento, os muitos preconceitos, a indiferença, a visão não-humanizada que recebemos, a incapacidade de nos vermos como pessoas capazes de amar e de sermos amadas, sobretudo.
Se um amigo se lembra de mim pela minha inteligência ou simplicidade, pelo paradoxo barroco que minha existência imprime, entre a completude e a carência, sinto-me honrada… Afinal, me fiz como um ser acadêmico – a Universidade me deu visibilidade – e ser lembrada por isso faz bem. Contudo muita gente não se dá conta do quanto essa solidão machuca. Principalmente quando ela é uma solidão que só você sente, porque só você não foi à festa, ao batizado, ao casamento; machuca quando, só na hora de estar com você é que as desculpas aparecem… Haverá sempre um imprevisto, um empecilho, uma ocorrência de última hora, ou um “Lembrei de você! Se soubesse que você tava com tempo, tinha te convidado! ”
Não quero que você que me lê pense que estou me vitimizando, até por que, falo muito do meu empoderamento e do meu amor próprio no que escrevo…Mas nem todo dia é fácil, né!?… Há dias e situações que nos puxam o tapete da alta autoestima. Hoje é um deles. Na verdade, uma delas, uma dessas madrugadas em que sentir-se carente dói pra burro. Madrugada em que você percebe que ninguém está nem aí se você está só, se está se sentindo só, se sente alguma coisa… coisa qualquer… coisa alguma. Afinal, são 2h45. “Todos dormem” – diz Renato Russo.
Nem todos, Renato! Nem todas!
MULHERIO DAS LETRAS
Coletivo literário feminista que reúne escritoras, editoras, ilustradoras, pesquisadoras e livreiras, entre outras mulheres ligadas à cadeia criativa e produtiva do livro, no Brasil e no exterior, a fim de dar visibilidade, questionar e ampliar a participação de mulheres no cenário literário.