NOTAS SOBRE A CRIAÇÃO POÉTICA
O fogo criativo é como a vida, sempre inesperada, essencialmente voraz e misteriosa. Os versos tecem suas voltagens em meu espírito, sou um rascunho vivo de inquietudes e quimeras. Tocar a dimensão poética, afundar os dedos no novelo mágico da criação significa estar disposta a visitar lugares secretos e desconhecidos, abraçar o indecifrável, mergulhar na urdidura metamórfica que nos cerca, neste e nos outros mundos.
Criação é sobretudo transfiguração, da experiência ardente alimentada pelo amor, mistério, beleza, o assombro existencial em si. Não creio que exista criação no vazio, sinto que o poema nasce do exercício de uma paixão vertiginosa e despudorada, da apreensão do movimento íntimo e secreto de todas as coisas viventes.Deste modo, percebo que poesia, amor e liberdade estão entranhados ao ato de criação, são intrínsecos, como partículas elementares geradoras de uma nova linguagem capaz de integrar homem e mundo, uma forma transgressora de conhecimento sobre o mundo. A vivência pulsante da poeta é a matéria para sua alquimia verbal, é neste ofício encantatório que me encontro, em subversivaepifania.
Tudo surge de um chamamento íntimo e enigmático, são viagens guiadas pela conexão com as forças, visíveis e invisíveis, do Universo. Minha criação nasce desta aventura exploratória e imprevisível, em que me vejo raptada pelos poemas, despida, devorada e vestida com uma nova pele, avassaladora e invencível. Todas minhas células aquecem o sangue da poesia no corpo do mundo, teço lugares de poder através da palavra, fortaleço algo indomável, me sinto mais bruxa a cada livro que escrevo. A fome pela poesia cresce como desígnio perene, manifestação de júbilo e terror, incêndio e possessão, delírio e volúpia.
A tessitura poética é palpável, porém imprevisível e perigosa e permanece violentamente entrelaçada às minhas vivências. Os poemas costumam fluir por longos períodos e convergem em livro, o mote e as linhas de força da obra nascem de um processo insólito de revelação sensorial. Na arena da linguagem é necessário domar os touros tautológicos, evitar as armadilhas retóricas, tecer trapaças semânticas, detonar os ilusionismos, deslocar, subverter, erguer novos mundos. O mais delicioso é ser sempre alquimista, feiticeira da palavra, inventar temperos, experimentar poções e beberagens, mergulhar voluptuosamente no vórtice, flanar em vertigem, bruxa e bailarina entre labaredas.
Minha pele é constantemente assaltada pelo erotismo da palavra poética, o corpo percebe-a e atreve-se a decifrá-la através da linguagem, a febre é sempre ágrafa e feroz. O mergulho sumoroso e a fusão alquímica entre meu corpo eo corpo do mundo ergue dimensões, imagens abissais, paraísos sensoriais advindos da fulguração magna dogozo. Encontro-me nessa busca incessante, mantenho sempre o faro atiçado e as armas engatilhadas, o corpo desnudo, em devaneio e deleite, açude sangrando pelas laudas.
Escrevo para vociferar o sonho, ritualizar as fomes, atingir o cerne, sangrar e amar a selva de si, sou todadelírio, alimentada por uma erótica visionária, a poética das concupiscências é meu domínio. Com luxúria e júbilo percebo-me, no espelho da criação: moira e demiurga, mordendo a maçã pura da Musa, flertando com o olhar fatal da Medusa. Sou bacante rainha, entre flautas e zarabatanas, rugindo, dançando e caçando as chaves encantadas do sonho, sigo tateando fomes, saboreando os segredos de versos–feitiços.
“A poesia não pode nem deve ser um luxo para alguns iniciados: é o pão cotidiano de todos, uma aventura simples e grandiosa do espírito.” Nos disse o poeta surrealista Murilo Mendes. Creio nisto, concebo e vivencio a poesia como este alimento, esse animal que me habita e me impele a içar corpo e voz em direção ao outro, em alteridade pulsante através da linguagem que se faz partilha e afeto. Acessar a potência do nosso ser poético é crucial, substancial transgressão que nutre nossa vida criativa, a verdadeira vida selvagem que reivindica o resgate dos ritos encantatórios e o banquete, bacanal denossa existência mais secreta e enfeitiçante.
Anna Apolinário (João Pessoa, 1986) é poeta, pedagoga, mestranda em Letras (UFPB/PPGL), produtora cultural independente, organizadora do Sarau Selváticas, fundadora da Cia Quimera. É autora de vários livros de poesia, os mais recentes são: A Chave Selvagem do Sonho (Triluna, 2020), Beijos de Abracadabra – poemas automáticos bilíngues (Triluna, 2023, no prelo), Bruxassussurram meu nome (Prêmio Políbio Alves – Funjope, no prelo).
MULHERIO DAS LETRAS
Coletivo literário feminista que reúne escritoras, editoras, ilustradoras, pesquisadoras e livreiras, entre outras mulheres ligadas à cadeia criativa e produtiva do livro, no Brasil e no exterior, a fim de dar visibilidade, questionar e ampliar a participação de mulheres no cenário literário.