Preâmbulo
Recordo que, quase morri, certa vez em Brasília, meados dos anos 70, tempo de repressão e ditadura política, e relembro positivamente da subsequente escapada e transcendência na luminosa Felipéia de Nossa Senhora das Neves (quando João Pessoa ainda era uma quase fazendinha à beiramar). Matinês no Cinema de Arte no ex-Hotel Tambaú, experimentos no Teatro Piollin (aula de dramaturgia e shows de MPB, sob gestão do genial Luís Carlos Vasconcelos). Relembro do deleite no surf e frescobol, iniciação na boemia, nos célebres bares “Maravalha” (depois “Opção”), do “Motokar” e do “Bar da Xoxota”, e dos “assustados” nas casas dos modernos professores “estrangeiros”, matizes da contracultura nas “terras tabajaras”; o tempo do “desbunde” (como talvez resposta social quando havia ainda repressão e ditadura), tempos perigosos, violência, medo, perdas, derrapagens, mas também tempos gozosos, criativos, musicais, dançantes, e delirantes processos de descobertas, transformação e autoconhecimento.
Décadas depois, recordo das aventuras na Baía Formosa e Praia da Pipa, no Rio Grande do Norte, quando ainda não havia a hiper-gentrificação, invasão dos turistas do mundo, a vida impressa a euro e tudo era quase harmonia entre os nativos, surfistas, roqueiros: havia a sensação de êxtase na “vida alternativa”. Naquela época quase morri outra vez, quando o bugre no qual eu estava derrapou na estrada e voou no espaço sem fim de uma noite estrelada. Remendaram minha carcaça e fui atrevido fazer doutorado no Rio de Janeiro. Era impossível concorrer com centenas de candidatos desempregados querendo uma bolsa de estudos na “Cidade Maravilhosa”. Pensei na frase de Beckett, em Esperando Godott: “Tente de novo, falhe de novo, falhe melhor”. Acontece que na próxima não falhei. Estava macambuzio, meio frustrado, “quase deprê”. Mas eu havia mandado um projeto de doutorado para o Rio (nem lembrava mais) e outro para o doutorado em Sociologia, em Paris. E eis que de repente a sensação de derrota se transformou em júbilo: recebi aceitação para o doutorado em Paris (Sociologia na Sorbonne) e de quebra ganhei um bolsa de estudos por quatro anos. (Mas essa é uma odisseia particular que poderá ser narrada posteriormente). Interessa agora transitar da esfera privada à esfera social, examinando as perdas pessoais e as urucubacas públicas.
Reflexões sobre a Vida privada e a Vida Pública
A história da vida privada não se perfaz separada da vida pública; há intersecções entre ambas. Penso na longa noite do regime militar no Brasil (1964-1984) e na inserção de nossas existências individuais (e coletivas) nesse processo, com tudo o que isso acarretou de dor e sofrimento, mas também experiências de crescimento em cada ato de coragem e enfrentamento. Prefiro apostar na filosofia do eterno retorno, em que há ascensões, quedas, subidas, descidas, derrapagens e outras quedas até um novo recomeço. Quando escrevo, penso nas histórias individuais e também na história dos outros, na história política BR, feita por homens públicos geralmente norteados por razões privadas.
Lembro da batalha e entusiasmo nacional durante o processo de luta pelas Eleições Diretas-Já, cuja emenda parlamentar Dante de Oliveira, foi derrotada, mas terminamos por aceitar a proposição do “candidato de centro”, Tancredo Neves, que veio a falecer às vésperas da posse (21 de abril de 1985). Grande perda. Ascendeu ao poder, então, o vice-presidente José Sarney (1985-1990), “ex-parceiro ideológico dos militares”, sobre o qual posso lembrar que: “proibiu a exibição do filme ‘Je vous salue Marie’ (Godard, 1985), uma versão do mito de Nossa Senhora atualizado na era moderna. Sua gestão ficou marcada pela ação ridícula dos “Fiscais do Sarney”, quando as maquinetas remarcavam diariamente os preços nos supermercados, na maior inflação do Brasil (45% ao mês). Entretanto, em 1988 foi promulgada a nova Constituição Brasileira, com matizes nitidamente progressistas. Então, houve o sentimento de ganho e avanço na vida pública.
Prosseguindo na história (quase “mitológica”) da vida sociopolítica brasileira, atravessada por altos e baixos, ascensões e quedas inenarráveis, chegamos à disputa Lula x Collor pelas eleições presidenciais (1989). Decidida, em termos, pela intervenção (golpista) da Rede Globo, que editou o debate televisual em favor do então “dono” da filial da própria Globo, em Alagoas. Relembremos, o primeiro ato da gestão Collor: o congelamento dos salários, a limitação nos saques bancários e o pior, o confisco das cadernetas de poupança. O filme “Terra Estrangeira” (Walter Salles & Daniela Thomas, 1989) mostra poeticamente uma dona de casa que morre infartada após perder todas as economias, devido ao confisco da poupança, durante o “Plano-Collor”. Em verdade foram inúmeros os casos reais brasileiros. No capítulo seguinte, temos o impeachment de Fernando Collor (1989), acusado de malversação de fundos, ao qual se junta uma série de acontecimentos macabros, acusações, brigas terríveis e morte em família, o assassinato misterioso – e sem solução – de PC Farias (tesoureiro de Collor e acusado de sonegação fiscal e falsidade ideológica), em 1996, junto com sua parceira. Há que se lembre a hiperinflação no governo Collor, que chegou a 1.972% ao ano (1989).
A vida do eleitor-cidadão brasileiro se parece com a imagem do menino que pede para a mãe lhe comprar os objetos-sonhos de consumo no shopping center e a mãe lhe reconforta com a frase ilusória: “Depois mamãe compra”. Assim a história segue, em meio aos sonhos, frustrações e a esperança em dias melhores.
Na disputa das eleições presidenciais de 1994, Fernando Henrique Cardoso venceu Luiz Inácio Lula da Silva. Dentre os seus feitos virtuosos: o fim da hiperinflação, e a criação de programas sociais pioneiros, como o bolsa-escola, o vale gás e o bolsa-alimentação. E sob a égide desbalanceada da globalização, seguimos à deriva dos países ricos, sem investimentos internos e a aposta arriscada nas privatizações. Extensão do neoliberalismo que só viríamos a sentir na pele com as gestões proto-fascistas de Temer e Jair Bolsonaro, que desmanchariam as conquistas sociais da constituição de 1988.
As gestões do PT, com Lula (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011 – 2016) trouxeram esperança às classes trabalhadoras durante 13 anos. E a sensação de liberdade, emancipação e prosperidade, geradora de afetos afirmativos no contexto do pacto sociopolítico prevalente veio a ser abalada com o golpe político, jurídico e midiático, contra Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016; uma noite macabra que durou 6 anos.
A gestão do golpista Michel Temer (2016-2019) se deu sob o signo do terror, tristeza, indignação e desesperança. Além do trágico sentimento coletivo de traição, usurpação e execução de uma série de práticas nefastas à população, como a reforma trabalhista e o desmantelo dos direitos sociais conquistados na constituição de 1988.
Entretanto, nesse caso, aplica-se o adágio popular pessimista: “nada é tão ruim que não possa piorar”. A eleição e governo de Jair Bolsonaro (2019 – 2022) foram os anos de maior retrocesso na história da República Brasileira. Junto com o seu séquito ministerial diabólico, tornou o cenário brasileiro uma terra arrasada, no que respeita a todas as áreas do social. Como se o mau-agouro de uma gestão fascista não bastasse, fomos assolados pela epidemia do coronavirus 2019, com mais de 700 mil vítimas fatais. E essa experiência se torna mais dolorosa e insuportável ao sabermos que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo Bolsonaro tivesse tomado as medidas necessárias.
Filosofia e Filosofia Espontânea dos Jornalistas
Existe “A Filosofia” e a filosofia espontânea dos jornalistas, na medida em que seu acervo de técnicas e conhecimentos passam pelo crivo da reflexão, autocrítica e consciência social no ato de se comunicar com o público. É relevante repensar o contexto da Filosofia e da Ética que perpassa a experiência jornalística, observando que sua performance passa necessariamente pela produção de linguagem, discurso, a arte de narrar os acontecimentos; e os seus “atos de fala” têm consequência na vida social.
“Lugar de Fala” é uma expressão desventurada pois carrega o ranço da prepotência; remete à famosa frase popular e autoritária brasileira: “Você sabe com quem está falando”? Entretanto, o “Ato de Fala” me parece uma expressão auspiciosa porque já vem envolta num sentido de libertação. O poder de falar, o poder-dizer, atua como alavanca de passagem ao saber-fazer. São instâncias positivas na Teologia, Psicanálise, Ciência Política, Magistério e Jurisprudência, e na prosa cotidiana dos atores sociais.
Todos esses campos devem muito à sabedoria da Filosofia e Ciência da Linguagem. Mas é importante trazer isso para o plano das experiências individual e coletiva, de forma pragmática, no exercício do pensar-falar-e-agir relacionado à vontade, desejo de verdade e sua virtual realização na vida cotidiana. A questão é como exercitar a superação diante do fracasso, perda, rejeição, e escapar das armadilhas do sentimento de mágoa, frustração e afeto do ressentimento. [A política brasileira é pródiga no quesito do ressentimento. Relembremos os casos Aécio Neves, Eduardo Cunha e Bolsonaro].
Suspeito que há, nesse itinerário, componentes ligados à formação da personalidade, do caráter e à habilidade de quebrar o espelho narcisista. Ou seja, a abertura de espírito para compreender a alteridade e enfrentar as perdas, derrotas, recusas, interdições e adversidades.
E aí há um complexo de relações que passam pelo crivo do psicológico – no que respeita ao saber-perder sem ressentimento: aprendizagem no que concerne aos modos de agir face à ordem dos discursos dos pais, sacerdotes, mestres, bedéis, policiais, juízes e outras “autoridades”, os “guardiães da lei, das regras e da normatividade”. Me ocorre pensar nas leituras de Michel Foucault, explorando a “ética do sujeito”, a “subjetividade”, “o cuidado de si”, o “autocontrole”, a escolha do “estilo de vida” e a “coragem da verdade”.
Trocando em miúdos, penso na arte de se orientar no pensamento, por meio de uma ética (sem necessidade de religião). Conviver com a “legiferância” das regras sociais, transcendendo a tirania dos discursos de poder e a potência do agir, optar, fazer escolhas e finalmente decidir.
É claro, há aqui ressonâncias de Nietzsche, Spinoza e outros pensadores que ousaram se rebelar no pensamento e no coração. Mas penso no livro “A Batalha dos Renegados” (1982), do jornalista paraibano Walter Galvão), na lítero-filosofia do romance “Nem morrer é remédio” (2012), do professor Hildeberto Barbosa Filho, e na licença poética da canção de Belchior “O ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. E por acaso, enquanto escrevo, entra na programação da TV o filme “Retratos da Vida” (Claude Lelouch, 1981), uma obra exitosa e dedicada aos perdedores.
Filme prosaico e até certo ponto melodramático, encarando um tema trágico (a ocupação nazista em Paris), mas que serve de lição à eticidade perversa estadunidense, que divide o mundo – de modo maniqueísta – entre ganhadores (os ricos) e perdedores (os pobres), sendo que estes últimos são motivo de desapreço e zombaria. Ainda bem que o “cinema pensa”, como mostram o filme “O declínio do império americano” (1986).
A Caixa de Pandora na Idade Mídia
Convém refletir sobre o saber-perder sem ressentimento e a estratégia de avançar novos processos de tentativas ancorados na coragem de criar orientada para o êxito. A história da política contemporânea brasileira parece atravessada pelo afeto triste e abjeto do ressentimento.
Todavia, no vasto espectro simbólico da mitologia, a lenda da Caixa de Pandora traz consigo insights instigantes também para pensarmos as “sombras, sobras e surpresas” (JMB), que assolam a instância da vida privada e também da vida pública. Relembremos que a Caixa de Pandora, quando aberta, libertou todos os males sobre a terra, mas no fundo uma criaturinha permaneceu, a esperança.
A posse de Lula, em 1º de janeiro de 2023, pode ser pensada nesse contexto. Se pensarmos no mito da Caixa de Pandora, todos os males do mundo teriam sido abertos para assombrar a nação Brasileira durante a gestão Bolsonaro, mas a vitória de Lula traria aos trabalhadores bons presságios e a esperança em dias melhores.
Basta examinar a escolha dos Ministros de Estado do Governo Lula e os compararmos ao staff sinistro da gestão anterior, logo sentimos a passagem de um período de perdas para outro, pleno de ganhos e a promessa de reconquista dos direitos sociais.
Entretanto, convém lembrar o contexto político atual da gestão e na mediação desequilibrada das mídias corporativas. Essas mídias exercem agressivamente a liberdade de empresa, em detrimento da liberdade de imprensa.
E estendendo essa constatação, percebemos que – impulsionadas pelas vicissitudes neoliberais, de que fazem parte – as mídias se tornaram corporações gigantes preocupadas com a rentabilidade dos seus associados. Vêem a gestão pública como um grande negócio, e portanto, são adversárias de uma gestão empenhada em reinserir o social no seu projeto de governabilidade.
E, há o caso esdrúxulo do parlamento: o Congresso Nacional, incluindo a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, abriga homens públicos movidos – em sua maioria – por interesses privados, para quem os eleitores são meros clientes, não cidadãos; logo, em oposição ao governo empenhado no princípio democrático, cidadania e inclusão social.
Por outro lado, há as mídias independentes, como o Portal Brasil 247, empenhado num projeto editorial atento à razão democrática e sensibilidade à causa social, logo um vetor de otimismo, elevação da autoestima dos cidadãos-telespectadores.
Há, portanto, um índice de ganhos e perdas nesse pacto político-editorial, mas há a aposta diária na transformação da crise em oportunidade. Cada um dos jornalistas progressistas e cada um dos ouvintes-telespectadores diariamente se comprazem no enfrentamento das falas, discursos e falsidades dos ressentidos, perversos e raivosos da política, do parlamento e do gadanho conectado na sociedade midiatizada.
Por essas e outras, apostamos na coragem da verdade dos atores sociais progressistas que enfrentam a sórdida disseminação das fake news e da desinformação cotidianamente. Quanto a nós, prosseguimos reunindo força e coragem para enfrentarmos as perdas, sem ressentimento, engajados num projeto de “felicidade do jardim público”, como escrevia Voltaire.
Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).