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Maria Valéria Resende acaba de publicar a biografia que ela escreveu de Patricia Galvão,  a ativista da política e da militância cultural nascida em Santos, também conhecida como Pagu.

Li esta notícia agora pela manhã, enquanto tomava o meu café, deitado na rede próximo à janela onde junto comigo fazem o desjejum os passarinhos meus vizinhos, que moram na árvore ao lado, e que todas as manhãs, quando eu acordo, os encontro já na janela esperando para que eu lhes dê o alpiste. Comemos juntos, eu e eles, como em um conto de Walt Disney.

E por falar em conto, certa vez contei a Maria Valéria Resende que admiro quem sabe escrever contos, como é dela o caso, que não apenas escreve como ainda incentiva e orienta um grupo de jovens escritores numa associação informal de artistas que discutem, leem e escrevem contos. Nunca escrevi um conto, eu disse, porque não tenho a capacidade para condensar histórias. Maria Valéria Resende me disse: o seu romance, O Ronco da Abelha, está cheio de contos dentro dele. Olhei para ela com certo espanto, e calei, concordando.

Maria Valéria Resende é uma dessas joias que a vida trouxe para o nosso convívio. Como escreveu o cronista Carlos Romero, no seu Ambiente de Leitura, do mesmo modo que o paulista W. J. Solha, do pernambucano Neroaldo Pontes, meu admirável ex-reitor da UFPB e profundo estudioso do Regionalismo, todos nossos, nossos amigos e conterrâneos por adoção e amor à Paraíba.

J. Solha tem uma coluna que chama de A Paraíba que não para de me surpreender, onde quando em vez publica alguma curiosidade nas artes, na ciência, nos esportes, enfim, dos bons feitos de paraibanos espalhados pelo mundo. Pego do mestre multiartista a deixa e, pensando em Maria Valéria Resende, penso: a cidade de Santos que não para de me surpreender. Santos é a cidade onde nasceu a nossa escritora – e freira – diga-se de passagem, Maria Valéria Resende. Numa rápida lembrança, me vem à memória nomes como o ator Sérgio Mamberti, a diretora de teatro Neyde Veneziano, grande especialista em Teatro de Revista, que não apenas estuda mas, o que é melhor, dirige espetáculos com a verve cômica que lhe é própria, Alcione Mazzeo, Alexandre Borges, Bete Mendes, Lolita Rodrigues, Ney Latorraca, Nuno Leal Maia, isto para falar apenas das gentes de teatro. Mas a lista se alonga em muito: Rubens Ewald Filho, um dos grandes críticos de cinema; Gilberto Mendes, Renato Teixeira, Tulipa Ruiz, na música. Na política: Aloizio Mercadante, Celso Amorim, Mario Covas. Nos esportes: Rogério Sampaio, judoca campeão do mundo; Picuruta Salazar, surfista batedor de recordes e 10 vezes campeão brasileiro, três vezes vice-campeão mundial; e pra finalizar, Adir Cid Rodrigues, Didi, um dos grandes artistas do futebol arte, esse que já morreu no Brasil, e que desde o humilhante 7 x 1 tomado da Alemanha passou a ser o futebol desastre. Didi, um meio campista de toque refinado, é o inventor da folha seca, pura poesia na elipse da bola que cai inesperadamente dentro da rede do adversário, contrariando a lógica, a física clássica, o escambau. Gol quântico.

Entre os santistas, o meu malvado preferido, o coração de ouro e a cara de mau, Plinio Marcos. Que ao escrever a sua segunda obra, Os Fantoches, teria sido defenestrado por Patricia Galvão, que escrevia uma coluna de teatro no jornal A Tribuna de Santos. Patricia teria escrito, segundo Plinio: “esse analfabeto esperava outro milagre de circo”.

Patricia Galvão, a Pagu, foi a primeira pessoa que traduziu as obras do Teatro do Absurdo para o português, e que ela chamava então de Teatro Filosófico. O termo Absurdo veio depois do livro de Martin Esslin em 1961. Tudo bem, mas a definição de Patrícia Galvão me parece muito mais precisa para o que é essa dramaturgia. Culta e bela – contrariando Camões – como a última flor do Lácio, Pagu teria juntado um grupo de atores em sua casa e lido para eles a tradução que fizera de Esperando Godot, de Beckett, então uma novidade no teatro mundial. Plinio Marcos, com cerca de dezoito anos, com a insolência dos inocentes atrevidos, disse que igual àquela escreveria umas dez. Escreveu Os Fantoches, a obra mais frágil de toda uma potente dramaturgia produzida nos anos sessenta e setenta.

Quando escrevia a minha tese de doutorado sobre a obra de Plinio Marcos fui à Tribuna de Santos para procurar a tal crítica de Patricia Galvão. Ao contrário do que alardeou o sempre polêmico dramaturgo, a crítica de Patricia Galvão é de uma elegância, de uma gentileza, de uma precisão de análise que eu reputo decisiva para o que Plinio Marcos se tornou a partir da escrita de Dois Perdidos Numa Noite Suja, em 1966, cinco anos após Os Fantoches, que ele reescreveu ao menos duas vezes, mudando título, mudando quase tudo.

Patricia Galvão escreveu, em 1933, o romance Parque Industrial, que não é o primeiro romance modernista porque em 1928 Mario de Andrade escrevera Macunaíma, mas talvez seja o que tem formalmente os princípios técnicos e estéticos buscados pelo Modernismo, frases telegráficas, capítulos curtos, contrariando a tendência dos escritos que se estendem por centenas de páginas como o Ulysses, de Joyce, ou o Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Em Parque Industrial, Patricia Galvão antecipa a temática política de esquerda que Jorge Amado vai escrever em O Subterrâneo da Liberdade, a partir de 1954, com o seu conjunto de três longos romances, Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel.

Não li toda a crítica teatral de Patricia Galvão no jornal A Tribuna de Santos, mas li o suficiente para entender que ali está guardada – em vias de perder-se – uma outra joia literária, de extrema importância para o teatro brasileiro, de extrema importância para a literatura brasileira, de extrema importância para a literatura feminina que tem em Pagu um referencial a ser sempre considerado, e que Maria Valéria Resende agora resgata com a sua biografia. Do mesmo modo, fica a dica: é preciso trazer do escuro das folhas empoeiradas do jornal antigo a escrita teatral de Patricia Galvão.