Um jogo de dados jamais abolirá o acaso, escreveu Stéphane Mallarmé em 1897, o famoso poema publicado na revista Cosmópolis, prenunciando o início da era quântica nas artes e no pensamento que vai orientar a produção de conhecimento científico e estético analisado, estudado, dissecado por mentes brilhantes como as de Sartre, Deleuze, Barthes, Lyotard, Kristeva e muitos outros filósofos, teóricos e literatos ao longo do século XX. E ainda nem existia a física quântica quando Mallarmé deu ao mundo o seu poema, ainda nem havia a fragmentação das ideias e as mudanças de vetores estéticos que vão marcar as vanguardas que se instalaram por toda a parte no início do século XX.
O século XX é a chave de ouro do novo humanismo. Poetas e pensadores que viveram a transição entre o mundo antigo e o moderno, aqueles que mais profundamente mergulharam no sentimento do novo, prenunciaram a mudança de ares que estava por vir. Não à toa Einstein vai encontrar em 1905 a equação perfeita para descrever o mundo em sua nova realidade: a relatividade de todas as coisas. Simples e complexa ao mesmo tempo. Tudo aquilo que parecia sólido no conhecimento, nas ciências, nas artes, na politica e no mundo do pensamento que caracteriza a atividade humana, tudo aquilo que era certeza desmanchou-se no ar, como uma profecia do bruxo da nova era, Karl Marx, um dos inventores do moderno, prenunciando inclusive o protagonismo dos que são socialmente destituídos de tudo ou quase, os lumpemproletários.
É o espírito do tempo que se manifesta nas mentes mais antenadas e que faz com que um conjunto de obras – Darwin com a seleção natural das espécies, Mallarmé com o seu jogo de dados, Marx com o Capital, Freud com a interpretação dos sonhos, Einstein com a teoria da relatividade, e depois, entrando na sala escura aberta para conhecimento moderno, uma nova teoria ainda mais perturbadora, a quântica, cujo princípio é o da incerteza, de tal maneira que provocado, o grande físico teórico da relatividade teria dito que deus não joga dados com o universo.
Chegamos ao ponto em que estamos, não nós, brasileiros, mas o mundo: à beira do abismo. Seria o fim da metafísica? Talvez, se a vida humana não fosse um constante conflito entre o caos e a ordem. É de espantar, por exemplo, que em pleno século XXI ainda haja a predominância de um pensamento que diga que a terra é plana. Entretanto, existe. E nós sabemos disso agora, espantados que ficamos ao perceber que essa obtusa ideia dominante durante os longos e tenebrosos séculos da idade média retorna agora sem a menor cerimônia, contrariando toda a lógica e toda a ciência. Mas isso é uma questão de fé, e não de conhecimento, até porque os que proclamam essa ideia como absoluta e verdadeira sejam, como a própria ideia contida, obtusos e ignorantes de tudo, das ciências que apontam o contrário, das artes que provocam um novo olhar, e até mesmo de deus, e que, tudo indica, contrariando Einstein, sim, joga dados com o universo e por isso jamais abolirá o acaso.
Quando eu escrevi Noite Escura, o texto que terminei montando na Capela de Santa Teresa, ainda nos fins do século passado – esquisito expressar isso, mas eu me sinto um matusalém atravessando o tempo – em determinado momento, Teresa diz: “Se antes a terra era plana, sob os meus pés estava plantada a natureza. Mas se agora é redonda, ruíram ao chão todas as certezas. Se é redonda a terra, o que me prende a ela? Que força faz com que sustente a água e não se despeje no firmamento o oceano?”. Nas mentes mergulhadas no obscurantismo medieval, esta me parecia ser uma questão crucial para a ciência, o grande segredo que somente foi desvendado por Isaac Newton em Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de 1687, abrindo o caminho do conhecimento que agora é solenemente negado pelos ultraconservadores que estavam, como ratos, escondidos nos esgotos da cultura. São eles que agora atacam as universidades e o conhecimento. São eles que destróem gradualmente os cursos de arte. São eles que atentam contra a democracia. São eles que não suportam encarar o protagonismo feminino da nova era, nem a ascensão dos pretos que um dia eles escravizaram. São eles que desmatam a Amazonia e todos os ecossistemas naturais em nosso país. São eles que provocam o genocídio das populações originárias das Américas. São eles a praga que assola a consciência universal. A nossa última luta, ouvi de Fernando Gabeira num seu comentário na TV, há se ser contra o fascismo. Ou é isso, ou os ratos roerão até o último átomo que nos separa da barbárie.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.