De tempos em tempos, somos convidados a reconhecer a importância do Sistema Único de Saúde-SUS. Infelizmente, isso se dá, quase sempre, em situações limítrofes, como a da pandemia do novo coronavírus, que provocou a morte de mais de 700.000 pessoas, no Brasil, e, mais recentemente, em outra situação, a do transplante cardíaco que salvou a vida do famoso Fausto Silva (Faustão).
É incrível como, apesar do sucesso da cirurgia realizada no hospital Albert Einstein, que atua no SUS desde 2008 e, por isso, é imune a impostos e isento de contribuições para a Previdência Social, ao invés de festejar o maior sistema público de transplantes do mundo, parte da sociedade se fecha na ideia de que Faustão furou a fila de transplante do SUS, o que, por óbvio, menospreza tanto a importância do sistema quanto a seriedade e competência das pessoas envolvidas no que há de mais complexo na área da assistência à saúde, que é a realização de transplantes.
Que fique claro, Faustão não furou fila, coisa nenhuma, e teve seu Direito de Cidadania à Saúde garantido e respeitado no âmbito do SUS, por meio da Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplante (CGSNT), responsável pela regulamentação, controle e monitoramento do processo de doação e transplantes realizados no país.
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a “disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento é permitida pela Lei nº 9434/1997, de fevereiro de 1997, regulamentada pelo Decreto nº 9175/2017, de outubro de 2017. Já, os critérios que organizam a fila de transplante de órgãos são estabelecidos na Portaria de Consolidação nº 4, de 28 de setembro de 2017, que aprovou o Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes. É por meio dessa regulação que o STN não permite nem privilégios, nem intervenções externas na fila de transplantes, bem como institui sua auditoria.”.
Estima-se, nos Estados Unidos, onde não há SUS, que o custo médio de um transplante cardíaco se aproxime de US$ 1.664.800, aproximadamente R$ 8.100.000,00. No Brasil, de janeiro a junho de 2023, foram realizados 206 transplantes cardíacos. Nenhum deles foi noticiado na grande imprensa e, muito provavelmente, nenhuma das 206 pessoas beneficiadas poderia arcar com valores tão altos, por isso é fundamental defendermos nosso direito de cidadania, como consta na Constituição Cidadã. Nenhum outro país teve a coragem de escrever em sua lei maior a seguinte frase: “A saúde é direito de todos e dever do Estado.” Lutemos para que esse direito possa se ampliar, todos os dias, e alcançar a todas as pessoas que residem em nosso país.
Ao mesmo tempo em que reconhecemos a importância do SUS na cirurgia de Faustão, na contramão desse reconhecimento, outra notícia aparece na grande imprensa, desta vez, de forma extremamente negativa. A edição do Fantástico, de 27/08/2023, trouxe a seguinte reportagem: “Exclusivo: médicos não cumprem toda a carga horária e ainda fraudam a escala de plantões no SAMU do RS”. Nessa reportagem, o programa denuncia que apenas 40% das horas de trabalho médico contratadas são cumpridas, o que causa enorme prejuízo à população.
Nosso sistema de saúde vem de uma luta muito maior do que a de meramente a mudança do modelo de atenção, vem da luta pela reforma sanitária, que prega um novo modelo de sociedade, uma sociedade que preze pela tolerância, dignidade, respeito e solidariedade entre os seres humanos. Essa é uma construção coletiva que precisamos manter viva e pulsante. Situações diametralmente opostas como a que envolveu a cirurgia de Faustão e a repugnante atuação de alguns profissionais no SAMU de Porto Alegre nos mostram o tamanho do desafio. Fortaleçamos, pois, o SUS, para que possamos garantir não apenas o nosso direito de acesso às ações e aos serviços de saúde, mas também a construção de uma nação onde a dignidade seja, de fato, o principal atributo de nossa gente.
Nelson Calzavara
Consultor para Gestão do SUS