Como já foi dito…

Perdoe-se a quem nasceu no campo e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros – miraculosamente conservados intactos.
O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro. E quem foi um dia menino, pode falar disso melhor. Como diz aquele velho escritor português: “o mais, são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável”. E sem elas não sabíamos o que fazer hoje. Eu não o sei.

Assim, teve também aquele esplendoroso dia em que fui ajuda de Carreiro, e a noite de permeio, tão gloriosa quanto os dias de minha infância, passada no sítio Curral Velho, herança dos meus “avoengos” da família paterna.
Sim, meu tio-avô, Nino, tinha decidido – porque a venda da rapadura havia sido fraca na Vila de Sant’Ana, – que parte da produção seria vendida em feiras de cidades vizinhas. E todas tinham a sua distância medida em léguas de beiço.

– É bem ali – diziam. O transporte seria feito em carro-de-boi, e o caminho seria andado a pé – seis léguas a passo de boi manso.

Perguntaram-me se eu queria ir de Ajudante de Carreiro, e eu respondi que sim – nem que fosse de rastros. Eu comandaria um dos carros, sob os olhos atentos de Antônio Marcelino, um morador do meu Tio. Ensebei as botas e escolhi o pedaço de pau que mais jeito dava aos meus 12 anos esgalgado para tanger os bois.

Acreditem! Sempre foram caladas as minhas alegrias. E por isso não soltei os gritos que estavam em meu peito – e que até hoje ainda não pude deixar sair. Passei sebo nos canzis, para não maltratar o pescoço dos bois, bati os cocões, ajustei os fueiros, peguei a sacolinha de tamboeiras de milho, e pintei as cantadeiras com carvão de Pinhão Roxo – para produzir o “cantar” inigualável dos carros-de-boi.

A jornada seria iniciada pela madrugada, e na ansiedade da viagem não consegui dormir, vislumbrando Pintando e Marreta, puxando o carro carregado de rapaduras de doce inigualável, comandado por mim.
Imaginei-me como uma figura de proa a atravessar caminhos e estradas, como faziam nos mares os piratas e aventureiros dos livros de aventura que eu os lia emprestados a mim por madrinha Adair Oliveira – uma santa em minha vida.

Pela madrugada alta, meu Tio Nino me acordou. Sentei-me na rede com os olhos piscos de sono e deslumbrado por uma luz inesperada, a entrar pela porta da varanda aberta do casarão alto de tijolos rudes unidos por uma cal amarelada, fruto da ação de chuva, sol e vento.
E saímos. Nove carros puxados por bois mansos – um deles comandado por mim, como dito anteriormente. À minha frente estava uma Lua enorme – branca, como a entornar leite sobre a noite e a paisagem do Sertão.
Tudo era branco refulgente, onde a Lua dava o negro espesso nas sobras. Por cima via-se a copa dos pés de angicos, aroeiras, baraúnas, pau d’arcos, ingazeiras de beira de córregos, oiticicas frondosas, juazeiros enormes, sob a luz branca.

E abaixo de tudo isso as sombras sobre o marmeleiro. E tudo parecia que não tinha fim. Era uma vastidão de luz e sombra, só.E foi aí que adivinhei que nunca mais veria uma Lua assim. Por isso, hoje, é que me comovem pouco os luares.

Tenho uma Lua dentro de mim que nada pode vencer.Depois, tudo se tornou simples: terminamos a viagem, vendemos todo o comboio de rapaduras e voltamos para casa.
Por causa de tudo isso me veio uma enorme vontade de chorar.
E foi aí que jurei a mim mesmo, não morrer nunca.
Nunca…