Arte: Ângela França

Ela era inquieta e sempre arteira. Pintava e bordava nos domínios do quintal, correndo ao vento, caçando sons raros. Cigarras cantando, árvores balançando ao vento que quase sempre harmonizam o coral de grilos que ouvia, cantando na sua cabeça. Havia uma guitarrada na fábrica de papel que os outros pareciam não dar importância. Ela só conseguia passar por ali dançando aquele sincopado urbano. O rangido do portão ocre de ferrugem, que anunciava a chegada da mãe, era o som que ligava sua perna à correr e abraçar a matriarca, que vinha chiando de calor e cansaço. Fora isso, nada mais lhe interessava. O silêncio era seu amigo e a arte, sua companheira.

Foi para escola e logo aprendeu a ler. Palavras escritas eram mais divertidas do que as faladas, que se embolaram no seu ouvido e davam um nó na sua língua. No recreio, era a diversão da professora:

– Vem cá menina, fala pra gente: de-lí-cia.

– “Belícia” – a menina falava sem perceber o erro. Achava a palavra que inventara melhor que a usual, já que ampliava o adjetivo, reforçando o “b” de bom.

– Ah… rarara… que bonitinha! – A professora gargalhava dos nós da língua da menina – Fala mais, bonitinha!

– Bunitina”- falou e saiu correndo, envergonhada por causa dos nós da língua e do ouvido emboloado.

Se escondeu na biblioteca para chorar baixinho, mas leu bem grande em uma capa colorida de um livro que estava na parte de baixo da prateleira: ”Poemas para brincar”. O livro enorme, que parecia um mundo retangular, começava assim: “Convite/ Poesia/ é brincar com palavras /como se brinca /com bola, papagaio, pião./Só que /bola, papagaio, pião /de tanto brincar /se gastam. /As palavras não: / quanto mais se brinca com elas /mais novas ficam. /Como a água do rio /que é água sempre nova. /Como cada dia /que é sempre um novo dia. /Vamos brincar de poesia?[1]”.Encantada, a menina vislumbrou um mundo onde as palavras não se emboloavam na sua língua e ainda faziam cosquinhas. Assim, passou a passar os recreios brincando “de livro”, rindo e sonhando, desmanchando os nós que tinha na língua.

O tempo correndo passou, num vento constante soprou e seu corpo espichou. A menina cresceu e virou professora, juntando poesia e música, ensinando a arte de ouvir. Na escola, encontrou crianças como ela, cheias de nós na línguas e ouvidos embolados, e a estes pode ajudar. Percebeu que muitos outros tinham nós em outros sentidos: uns nas gargantas, de tanto calar; roxos por baixo da pele, de tanto se defender; maresia e areia nos olhos, que não deixam ver.

Ela lembrou das palavras de um velho mestre de coração menino: “As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor. Aprendemos palavras para melhorar os olhos. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Quando a gente abre os olhos, abrem-se as janelas do corpo, e o mundo aparece refletido dentro da gente[2]”.Assim, com palavras faladas pelos olhos e pelas mãos, ajudou a desatar aqueles nós com poesia, música e afeto.

Antes de dormir, a professora menina lê poesia para desatar seus nós, que não estão só na língua ou nos ouvidos emboloados. Ela deságua os olhos para se transbordar de poesia, e encher sua peneira de água de cheiro, lembrando que na escola não tem só aluno e professor. Antes, a escola tem gente[3], e gente, sente e sonha! Pelos ouvidos, olhos, mãos, pés de caminham e dançam, corpo que abraça e trabalha, que se aprende e vive. E ela, surda, que aprendeu a ouvir e cantar, hoje, ensina e aprende, a pensar, a escutar e a fazer de nós, laços.

 

[1] José Paulo Paes, “Poemas para brincar”.

[2] Rubem Alves, “Por uma educação sensível”.

[3] Poema anônimo baseado nas ideias de Paulo Freire, “A Escola é”.

 

 

Texto de autoria:  Jéssica de Pádua é Arte educadora, atriz e encenadora do Coletivo Revestrés de Teatro Popular, contadora de histórias, mediadora de leitura e Leitora pública do Corpo de Leitura e Canto Lírico do Mulherio da Letras Zila Mamede. Pesquisadora pelo Grupo de Pesquisa em Leitura e Literatura (GPELL) e Mestranda no PPGED/UFRN. É poeta, escrivivente e dramaturga nas horas vagas; mãe e surda nas horas-cargas.