Em agosto nos vemos, o romance póstumo de Gabriel Garcia Marques é uma nostálgica despedida das alegrias da vida. Uma mulher que em todo o mês de agosto viaja para uma ilha onde a sua mãe faleceu e foi enterrada, e lá, além de flores que leva ao túmulo da mãe, vive intensas aventuras sexuais.
Em agosto no vemos é a despedida da vida e da literatura do velho Gabo, que o escreveu já dominado pela doença que o levaria para sempre, talvez para a Macondo dos seus ímpetos literários.
Escrever uma obra basilar da literatura universal é um feito único. Tivesse Gabriel Garcia Marques apenas escrito Cem Ano de Solidão e nada mais, ainda assim estaria o autor imortalizado no panteão dos deuses da criação literária. Mas toda a sua obra é absolutamente genial. Tudo o que dele eu li me comove profundamente, sobretudo amo o seu estilo, as suas frases que por muitas vezes são desconcertantes. Pensando em Gabriel Garcia Marques e na sua literatura eu penso o quanto é inquietante a literatura latino-americana. A ele pode-se juntar muitos outros nomes de grandes romancistas, desde o também prêmio Nobel Mario Vargas Llosa, passando pelo genial argentino Jorge Luis Borges e por outro argentino de grande porte e que eu só muito recentemente conheci, Ricardo Piglia e os seus diários. Isto sem contar com o mais que famoso argentino, Julio Cortazar com o seu Jogo das Amarelinhas, que por sua vez foi o inspirador de Piglia.
Uma obra guarda consigo as suas próprias características que são intransferíveis, e por isso cada obra é um mundo em si, não melhor nem pior do que outra igualmente genial. Em Agosto nos Vemos tem sido injustamente comparada a Cem Anos de Solidão, a grande obra do realismo fantástico latino-americano e que inspirou, por usa vez, a João Ubaldo Ribeiro quando escreveu Viva o Povo Brasileiro e a Ariano Suassuna quando este escreveu A Pedra do Reino, isto até onde alcança a minha pouca visão de literatura. Não se pode esperar que um autor repita a grandiosidade de uma obra específica em toda a sua obra, e principalmente se esta é extensa, até porque, tenho para mim, que uma obra traz consigo o seu próprio escopo, o seu ritmo, o seu tema e desenvolvimento, quando não as suas personagens e as situações em que vivem, e isso me parece que independe da vontade ou da potência criativa de quem as escreve. E aqui eu estou considerando, à maneira de Pirandello, que uma obra é um organismo vivo, pulsante no espírito do criador.
Gabriel Garcia Marquez certa vez falou que Cem Anos de Solidão lhe chegou num vislumbre. E de onde teria vindo isto? De lugar nenhum surgiu a primeira sentença e por trás dela, invisível mas palpável, estava o romance inteiro, alheio à sua vontade, como as personagens em busca de um autor. Só lhe restava por no papel o que a alma fez transparecer, e transformar a ideia em arte, em literatura, e com isso levar o seu autor ( caberia aqui esta palavra? ) ao patamar de inventor do imaginário contemporâneo, por sua vez labiríntico e tortuoso.
Obviamente que numa historinha curta, como Em Agosto nos Vemos, não se vai encontrar a arquitetura complexa de obras maiores de Gabo, até porque obras maiores necessitam de maiores fôlegos de quem as produz, e ao escrever a sua última obra o autor de O Amor nos Tempos do Cólera já estava beirando os seus oitenta e sete anos, e desde 2009 fora acometido por uma demência que de certa maneira o aposentou para a literatura.
Certa vez eu vi um video, resultado de um estudo de técnicas corporais para atuação, em que um velho bailarino, doente, cadeirante, sofrendo de demência, ao ouvir a ária de uma determinada obra que esteve por muito tempo em seu repertório, tem o impulso de dançar e dança dentro do seu limite de velho, de cadeirante, de alguém cuja memória, digamos assim, cerebral, já escapa do seu controle, mas, estimulado pela música guardada em algum ponto de seu corpo, reage instintiva ou corporalmente, sem que a reação atravesse o crivo da razão. Não seria isto a obra dentro de si, pedindo passagem, estimulada pelo som ou pelo eco pulsante de algo que já não pode acontecer em toda a sua plenitude?
Em Agosto nos Vemos, mesmo que o velho Gabo não a quisesse publicar, sabendo ele mesmo, apesar da demência progressiva que o acometeu, de que não estava a obra no ponto alto de sua literatura, e mesmo com toda a limitação ele a reescreveu cinco vezes, e o melhor de tudo: está lá o bom estilo do escritor, a fluência narrativa, a personagem marcante vivendo uma situação insólita, a de uma vez por ano, no aniversário de morte da sua mãe, reencontrar o secreto prazer da luxúria. Gabriel Garcia Marques afirmou que toda a sua obra foi um esforço para escrever um único livro, o livro da solidão. Em Agosto nos Vemos é isso, um delicioso e envolvente relato da solidão de Ana Magdalena Bach. Vale o que está escrito. E eu já estava com muita saudade de Gabo.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.