O livro extraordinário O que pesa no Norte (Tiago Germano, 2022) é uma obra que não deixa nenhum leitor impune. Uma modulação definitiva que transcende os limites da literatura regional e universal. Um trabalho “terrivelmente” cosmopolita que extrai das entranhas uma profunda “história do interior” (no sentido geográfico e psicológico) e assim atira no coração do ethos machista e patriarcal do “Norte-Nordeste”. Mergulho profundo na dimensão noturna da família nuclear latino-americana, brasileira, nordestina, com tudo o que isso implica em sobressalto, surto, pesadelo, e abissal afetividade.
Narração do itinerário de uma família tradicional do interior da Paraíba, constituída por Ricardo (pai austero, prof. de Ciências agrárias, cabeça de coronel, autoritário e violento), Ana (a mãe depressiva, omissa e resignada), Gustavo (o filho mais novo, macho-alfa “normal” à imagem do pai, agressivamente competitivo) e Guilherme(o filho “estranho”, desde cedo vítima da violência paterna, que trocou o curso de Direito pelo teatro em São Paulo e que sumiu no mundo “sem deixar rastros”).
O foco da trama incide sobre a busca do pai pelo filho, que parte da Paraíba à procura do filho desaparecido, numa odisseia que atravessa as misérias do “sul maravilha”, o submundo do crime, da prostituição, dos inferninhos paulistas, dos zumbis e traficantes da cracolândia, esbarrando em personagens singulares e sinistros, como quem desvenda a alma atômica dos habitantes do Brasil no fim do século XX. Uma viagem aos confins da noite sem fim na “paulicéia desvairada”.
Entretanto, Tiago Germano tece sua trama embaralhando diversos tempos narrativos. Em flash backcontínuo devassa o percurso histórico de várias gerações de nordestinos, os coronéis, seus jagunços, suas mulheres, seu gado, suas propriedades, onde o lar e o puteiro têm fronteiras bem precisas, assim como o lugar de fala dos machos e o lugar de silêncio das fêmeas; faz-se assim uma “espécie de psicanálise” do patriarcado nacional que começa pelos sertões do nordeste e se dissemina nos labirintos da metrópole. Senhor de uma metodologia erudita, em termos de criação e crítica literária, Germano realiza uma obra rara, cujo fio condutor narrativo é perpassado pela técnica do ensaio literário, demonstrando como a Literatura pode ser também um vetor de Conhecimento.
Uma ode à dramaturgia. A obra mergulha nos subterrâneos da criação teatral, seguindo justamente o legado mais rico, inquietante e perturbador da dramaturgia brasileira. Toca assim nos nervos do sistema artístico-dramatúrgico nacional, revisitando os fios de uma teia representacional desde o Teatro Oficina, Usina-Uzona, Teatro visceral da Crueldade, Teatro do Absurdo, a antropofagia em cena na contraluz dos escombros da metrópole espremida entre os viadutos, shopping centers, o insano transe urbano do consumo. Assim, Germano visionariamente e involuntariamente (?) presta homenagem ao grande artífice do Teatro Brasileiro, José Celso Martinez Correia (1937-2023).
Há ali ecos de Kafka (“Carta ao Pai”) e de modo sensível-inteligente, Tiago Germano pulveriza o mito do complexo de Édipo, promove o exorcismo da culpa e da homofobia ancestral, o medo da homossexualidade no cerne do ethos machista latino-americano. No centro da cena, jaz o migrante pai-patrão-carrasco-machista no labirinto assustador da metrópole, sua insegurança e fragilidade no contexto de um sistema patriarcal falido e assombrado com a emancipação das mulheres, da população “queer”, dos LGBTQIA+, e dos homens livrese devotados ao amor sincero pelas mulheres.
É sobretudo um livro audiovisual; é muito imagístico:ali se misturam as imagens telúricas, ásperas, abismáticas – em flash – do sertão, os sons e ritmos do Norte, e as imagens-sonoridades, ruídos high-tech do mundo outsiderdas quebradas centro-periféricas paulistanas. A narrativa traduz as memórias acústico-visuais, onírico-sentimentais do personagem-pai; misto de fotografia expressionista, em abismo permanente e cinema underground hiper-moderno.Tudo isso se faz em fantasmagoria e vertigem de um homem empenhado numa busca sem fim, que se perde em meio à chuva, tempestade, ao turbilhão de espectros driblando o trânsito entre a avenida e a sarjeta. Sem redenção, nem pílulas douradas, um desencontro marcado do homo demens e seus valores despedaçados.
Como diria Nietzsche, “esta é uma obra para todos e para ninguém”. Seria preciso o amor à literatura, a abertura de espírito e a vontade de (auto)transformação para um debruçar-se sobre o texto denso e provocador de Tiago Germano, onde há forma e conteúdo “revolucionários”, diriam os vanguardistas. Uma obra literária atravessada pelos ecos da lítero-filosofia das profundezas, portanto um libelo existencialista, teatralização radical das “dobras da alma”.
Que venha o merecido Prêmio Oceanos 2023 para a obra, mas fico torcendo para que vire logo um grande filme nas telas do cinema.
Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).