Cátia de França se tornou inesquecível para mim desde a primeira vez que a vi no palco. Noite de luxo no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre. Zé Ramalho estava na cidade lançando o álbum Avohay. Canções que se tornaram épicas e ainda hoje estão na boca do povo. Naquela noite de 1978, os Dzi Croquetes também estavam por lá. Fiquei dividido, mas lá estava eu na plateia do Leopoldina. Uma casa cheia de charme. Palco que abrigou grandes espetáculos, mas não existe mais.
Na banda do Zé, outros dois paraibanos que anos após eu conheceria de perto na Paraíba: Pedro Osmar na viola e Cátia de França na sanfona. De lá para cá muita coisa mudou. O Teatro Leopoldina só existe na memória. Zé Ramalho continua fazendo muito sucesso cantando as mesmas músicas e Pedro Osmar voltou para Jaguaribe. Catarina é o nome de batismo de Cátia. “Minha mãe me deu um nome de rainha”, diz. Eis uma artista maiúscula, respeitada e amada pelo seu público.
No ano seguinte (1979) o mercado fonográfico lançava um álbum que ainda hoje considero um dos mais belos da discografia brasileira. “Vinte palavras girando ao redor do sol” revelava uma característica forte na metalurgia criativa de Cátia: a literatura. O título do disco foi extraído de um poema de João Cabral de Melo Neto: “Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol / que as limpa do que não é faca”. Essa base literária cinquenta anos após ainda sustenta o cirandar poético e musical de Cátia.
O Brasil ainda vivia uma ditadura, mas já se podia sentir os primeiros sopros da abertura. Havia um farol iluminando a tempestade. Na música surgiam nomes como Zé Ramalho, Alceu Valença com seu” Vou danado pra Catende”, Elba Ramalho e sua “Ave de Prata” e outros artistas que dariam o tom de uma nova estética musical. Estava posta a rebelião sonora de um país que começava a soprar para o lixo da história os entulhos de um regime autoritário que disputava corações e mentes em toda a América Latina. “Não há guarda-chuva contra a covardia / De erguer a cabeça ao menos por um dia”, cantava Cátia, a “paraibana de tutano”.
A arte brasileira – principalmente a música – sempre foi um foco de resistência e de enfrentamento desarmado. A censura prévia rondava as gravadoras e editoras. Raul Seixas foi preso para explicar o que significava a tal “Sociedade alternativa”. O fato é que no embate político havia uma batalha estética. À censura, os artistas respondiam com metáforas cada vez mais elaboradas. Nesse ambiente hostil foi se solidificando a obra de artistas que jamais se renderam aos apelos da mediocridade no lucrativo mercado das multidões. Artistas como Cátia de França foram e são um farol de dignidade artística iluminando o futuro.
O álbum que marca os cinquenta anos de caminhada de Cátia de França na música brasileira, “No rastro da Catarina”, já está nas plataformas. Entre outras coisas, revela o rigor e o vigor de uma artista singular cuja força é reconhecida pelas mais diferentes vertentes da crítica musical brasileira. Uma artista que mantém um público fiel Brasil afora. Gente que sabe do privilégio de contar com Cátia de França em plena atividade há tanto tempo. Ela traz a força dos imprescindíveis.
Vídeo: Ivi Oliveira – Show de lançamento no Sesc Pompéia/SP do “No Rastro da Catarina”
Mais uma vez Cátia ressurge como uma Fênix, “de alma lavada (…)/ pra exaltar a vitória dos sentimentos”. Ela voa nas asas da poesia. Traz para a música que faz, os seus guias, seus orixás e a transversalidade poética de uma história musical que já soma cinquenta anos. Tempo em que ela lançou dois álbuns antológicos como o já citado “Vinte palavras” e “Estilhaços” e outros tantos. Lembro de mim no Beco do Carvalho, em Porto Alegre, ouvindo “Na Ponta do Seixas”.
“No rastro da Catarina”, mais do que falar da força de uma artista e mulher negra, com seus orixás e suas melodias, seus versos que caminham entre João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros. Cátia remonta sua diversidade rítmica, explorando do tango aos tons africanos, sempre “desconfiando de si, sem melindres”. Poucos e poucas, ao longo da história mantém tamanha força e coerência artística. Cátia é um patrimônio musical brasileiro em plena atividade, derramando toda a sua energia generosa. Como quem faz da sua vida inteira uma história profunda.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.