Primeiras impressões de O Mundo depois de nós(EUA, Sam Esmail, 2023; com Júlia Roberts, Ethan Hawk, Mahershala Ali e Kevin Bacon), baseado no livro Deixe o mundo para trás (Rumaan Alam). Retrato de uma família classemédia estadunidense, que se cansa do estresse de Nova Iorque e foge para o campo. Amanda (Julia Roberts), racista e arrogante, profere uma frase cruel: “Eu não gosto de pessoas”. Sintoma explícito da crise psicológica pós-covid ou breve diagnóstico da classe média branca estadunidense em tempos terminais? Na zona rural, coisas estranhas passam a acontecer a começar por um navio (“vermelho”) gigante que invade a praia,aterrorizando os banhistas. No século passado (1975), o susto veio com um Tubarão assassino. Mas aqui a metáfora do perigo são os meios de transporte (carros, navios, aviões) controlados por inteligência artificial, e nesse ambiente distópico os veículos começam a se descontrolar mortalmente.

 

A casa alugada pela família – Amanda (Roberts),Clay (Hawk) e seus filhos parece a realização do sonho de consumo ocidentalizado. Mas o que era o triunfo dafuncionalidade começa a se tornar disfuncional: telefone, televisão, internet entram em pane e logo se instala a sensação de mal-estar na família midiatizada. O mundo sem conexão é o terror da sociedade conectada do sec. XXI. O black out nos lembra a distopia da série Black Mirror. De repente, chegam à casa, os proprietários, um homem negro (G. H/Ali) e sua filha (Ruth/Myha’la) e pedem abrigo durante o apagão e as ocorrências estranhas na área. Daí se instalam sinais de racismo em meio às conversações, algo que vai atravessar a narrativa junto com outras surpresas assustadoras. Ventania, tempestade e invasão de animais silvestres (renas) criam transtorno e amedrontam os personagens. Gradativamente, ecoam ruídos ensurdecedores, sons e ventos radioativos, um avião descontrolado aterrissa gerando destruição e há cadáveres e braços decepados na praia.

 

Nas autoestradas, carros inteligentes” desgovernados geram acidentes, interditam o trânsito e deixam as pessoas ilhadas. Aliás, o quadro é de um mundo sem ninguém, eliteralmente se instala na tela a imagem desoladora do “deserto do real”.

Em 2021, Hollywood lançou uma versão apocalíptica, do fim do mundo, na comédia ficcional Nãoolhe para cima (de Adam Mackay, com Di Caprio, Meryl Strep etc), e agora, em O Mundo depois de nós, são tecidas novas teorias apocalípticas, onde nada parece ter clareza e tudo é muito enigmático. Um mar de metáforas recheia a nova produção da NetFlix para acalorar a audiência de fim de ano. Há matizes racistas, mas essa não é a tônica principal do filme. Quando a radiação afeta o filho do casal (Archie/Charlie Evans), e lhe caem os dentes, o pai e o dono da casa vão pedir ajuda a um ex-combatente (Kevin Bacon), que se guarnece de mantimentos como quem enfrenta uma guerra (ou pandemia), ostenta a bandeira estadunidense na frente da casa, fortemente armado e agressivamente reluta em oferecer ajuda. Um emblema do suprematismo norte-americano, índice do neoconservadorismo que marca os EUA no sec. XXI.

Dos aviões no céu caem panfletos grafados em mandarim, anunciando uma espécie de invasão estrangeira, mas ao mesmo tempo, os efeitos de neutralização da mídia, bancos, gadgets tecnológicos sugerem uma invasão de hackers. A fala de G.H (o dono da casa), que conhece métodos militares/governamentais em situação de guerra, consiste numa forma do filmeexplicar o mistério da trama; ele fala numa manobra governamental em três fases: 1) Isolamento para desativar a comunicação e os meios de transporte, tornando os cidadãos surdos, mudos, paralisados de medo; 2) Geração do caos sincronizado com ataques de desinformação (fake News) para amedrontar as pessoas em estado de vulnerabilidade e então os cidadãos se voltam uns contra os outros; 3) Golpe de Estado, guerra civil, colapso dos programas econômico-políticos e o fim do regime democrático. Isto é, o filme, outra vez, desenha a paranóiaamericana e o medo contra um inimigo externo; o texto cita possíveis ataques da Rússia, China, Coréia do Norte e Iraque. Exibem-se sinais do terror dos estadunidensesacerca do declínio do Império Americano, que constituemhabituais “cartas na manga do cinema de Hollywood, forjando o cinema catástrofe que traduz o terror aliado ao complexo de superioridade estadunidense.

Entretanto, há outros aspectos na narrativa que mereciam ser destacados:

O primeiro é o recurso da inserção de hordas de animais selvagens que invadem o espaço doméstico (como renas e flamingos) que funcionam, por um lado como seres antenados que pressentem a eminência de uma catástrofe natural em grandes dimensões e que ameaçam os humanos, e por outro lado, a resposta da natureza àdepredação ambiental pelo homo sapiens; a ira de Gaia face à destruição do planeta, referência ao fenômeno do antropoceno, teoria da extinção do meio ambiente pela devastação humana.

– O segundo ocorre ao nível do imaginário. A filha do casal (Rose / Farrah Mackenzie) sofre com o “apagão” (e a falta de conexão) pois não pode assistir à sua série preferida, Friends, o que segundo ela lhe “traz felicidade”. Lembremos, a mãe da garota (Amanda / Júlia Roberts) no início da trama já tinha proferido a sentença pouco auspiciosa “Não gosto de pessoas”. Assim, de algum modo, o filme traz a ideia do “princípio da ficçãocomo se fosse o princípio da realidade”, algo que traduz em grande parte o perfil cognitivo de uma nação que lê pouco, de pessoas que interagem mal com as outras, racistas e narcisistas que têm dificuldades de compreendero outro e votam num presidente racista como Trump.(Relembramos, em tempo, que essa ideologia se expande para várias nações colonizadas pela “superindústria do imaginário” made in U.S.A).

Ocorrem-nos a propósito algumas questões: por que os brasileiros se identificam tanto com os personagens das séries estadunidenses? Por que os turistas brasileiros de classe média (com pouca bagagem cultural) adoram viajar para Miami? Por que eleitores brasileiros votam nos políticos tiranos já sabendo os valores racistas que estes defendem?

Talvez o sucesso desse filme, que tem causado frisson da audiência da NetFlix, fique por conta dos efeitos especiais (como é de praxe no gênero cinema-catástrofe). Se você tirar o som do filme talvez a sensação seja bem diferente.

No final do filme, a câmera mostra o rosto de felicidade de Rose ao encontrar um DVD com a série favorita (Friends). É interessante perceber que Rose (a personagem provavelmente mais sensível do filme) não tem amigos e seus desejos e expectativas se realizam através da identificação-projeção- no encontro virtual com os personagens de ficção; o seu nicho afetivo-sentimental habita o mundo da ficção na TV. Talvez para ela, Friendsencarne o sentido da “amizade”, algo que ela não encontra em seu entorno.

   

Há aspectos estéticos bonitos, degustáveis e interessantes na fita e reconhecemos o motivo pelo qual tem atraído vastas audiências no planeta. Há interpretaçõeslouváveis dos atores, fotografias deslumbrantes e finas decupagens na arte final. Mas o roteiro é meio desencontrado, o som é estridente, a montagem atordoante (talvez propositalmente) e o final… bem seria deselegância e crueldade contá-lo aqui para os leitores.

Entretanto, o filme O Mundo depois de nós é exibido no Brasil e no mundo, simultaneamente à exibição, nos cinemas e tevês nacionais e mundiais, do filme Assassinos da Lua das Flores (Martin Scorcese), que pode ser percebido, pelos corações e mentes mais sensíveis, como um exercício de psicanálise ou lição de antropologia da cultura estadunidense. Apostaríamos que Assassinos da Lua das Flores ficará na memória dos cinéfilos mais antenados e O mundo depois… cairá no esquecimento.

Relembramos, a propósito, o livro corajoso do filósofo Chomsky, Quem manda no mundo?, um estudo profundo sobre o poderio estadunidense e as formas de seu declínio. E por último, cumpriria relembrar a frase do dandy maldito”, Oscar Wilde: A América é o único país que foi da barbárie à decadência sem passar pela civilização.