1. Ciclos musicais, manifestos e revoluções das gerações roqueiras

O circuito midiático-audiovisual do YouTube nos possibilita o acesso ao “espírito da música” que norteou as gerações dos anos 70, 80, 90. Um baú techno-musical que armazena a trilha sonora de várias gerações de ouvintes-fans-cidadãos, interligados pela música, há mais de meio século. É algo que transcende as bolhas geracionais, como mostram os memes alusivos a Belchior pelos nativos digitais (durante o espetacular sumiço do artista).

Em verdade, o imenso acervo do rock-pop brasileiro (da jovem guarda à tropicália, do samba reggae ao mangue beat) é uma conjugação de vozes, ritmos, dicções e sonoridades que geram um espírito comunitário, animado pelo gênio da musicalidade. É dessa substância extraordinária que é feita a nossa formação acústico-cognitiva-musical, da poesia cantada, alquimia das letras, arranjos sonoros e toques instrumentais.

Fizemos um exercício de pesquisa sobre cultura audiovisual e produção artístico-musical brasileira; daí, elegemos três vídeos com as emanações musicais de Belchior, Renato Russo & Legião Urbana, Chico Science & Mangue Beat, e os levamos às jovens audiências universitárias formadas por estudantes de comunicação, principalmente para sinalizar caminhos na pesquisa sobre mídia audiovisual e arte musical. Trata-se de uma estratégia metodológica investigativa e ao mesmo tempo uma experiência de observatório estético-musical de três gerações diferentes, dispostas em ciclos poético-musicais, que sinalizam uma formação recente no terreno da história da cultura musical brasileira.

2. Cantor-compositor, cidadão do mundo, lendário andarilho do sertão

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No primeiro ciclo dessa “odisseia”, recuperamos o filme “Belchior: apenas um coração selvagem” (Camilo Cavalcanti e Natália Dias, 2022).

Antônio Carlos Belchior (1946-2017) elaborou uma poética musical na qual se reconhecem os jovens-e-veteranos fans do menestrel lírico nordestino, hábil mixador das fontes eruditas e populares. Cantor-compositor-poeta errante, nômade, andarilho, cujo itinerário migratório se fez enigmático e misterioso. E há aí, algo de premonitório, pois a travessia de Belchior é fiel à profética enunciação poético-musical de suas canções: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida”; “Se me der vontade de ir embora, vida a dentro mundo a fora, meu amor, não vá chorar…”.

Belchior encarna a mística do rapaz latino-americano do interior do Ceará, cuja lenda pessoal ganhou dimensões para além das fronteiras. Com o “pé na estrada”, realizou o desejo de legiões de fans ávidos para se lançar na estrada da vida, no ímpeto da autodescoberta, além da glória e reconhecimento. Logo, “concretizou” o sonho universal da juventude de se jogar no mundo, desde os beatniks (anos 50), os hippies (anos 60), e depois do vaticínio de John Lennon (1970): “Dream is Over” (“O sonho acabou”).

Explica-se por aí, grande parte da formação da comunidade afetivo-musical, das tribos rebeldes, inconformistas, interconectadas em torno de sua gigante iconicidade. Para além das idolatrias de cada época, há personagens, como Belchior que legou um rastro poético fenomenal, referência para os nordestinos, brasileiros, latino-americanos, com músicas e letras de qualidade, fruto de anos de pesquisa e preparo profissional.

Belchior fez uma arqueologia poética dos vastos terrenos lítero-filosóficos, geopolíticos e sentimentais dos sertões e dos mares nunca dantes navegados. Reuniu versos de Dante Alighieri, emanações do latim, da literatura ocidental. Na sua “Divina Comédia Humana”, reuniu Olavo Bilac e o “samba de breque” de Adoniram Barbosa.

Elis Regina foi a primeira a gravar Belchior e responsável pelo seu primeiro sucesso. Além dela, Vanusa, Cida Moreira cantaram sua canções, iluminando arestas lítero-musicais urbanas na criação contemporânea, e os jovens, como Emicida, têm regravado suas canções. Fustigou o conflito das gerações (“Como nossos pais” e “Velha roupa colorida”), e fez uma “psicanálise” melódica de sua geração, pródiga das influências iconoclastas do rock (vide disco “Alucinação”). Belchior realizou uma sinergia original reunindo os espíritos rebeldes musicais do nordeste brasileiro, o rock industrial dos Beatles, a psicodelia irreverente dos astros do rock-pós-Woodstock, mas sobretudo as baladas intimistas e solitárias dos cantadores (como Bob Dylan).

As frases de Belchior povoam os muros pichados das cidades, as camisetas dos fans jovens e rockeiros veteranos, circulam nos memes da internet e redes sociais, meio humor, tristeza e meia, ágeis iluminações reanimando as “sombras, sobras e surpresas” (JMB) do “breve século XX” (“O ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”).

Talvez Belchior tenha sido o último a desbravar o território sentimental de nossa “recôndita” latinidade. (Porque “globalmente”, aos olhos dos povos do Norte, nunca fomos ocidentais, apenas latinos). Belchior forjou uma sinergia com os “outsiders” do mundo, em fuga da selva de pedra, em busca da paz nos desertos e cachoeiras, no Uruguai (“o rio dos pássaros pintados”), no anonimato do Sul, no outro lado da vida longe dos holofotes. Como diria, Baudrillard, o andarilho performatizou uma ética-estética do auto-desaparecimento. Belchior deixou família, trabalho, amigos, e se lançou na estrada. Leitor de Sartre (filósofo existencialista), elaborou seu próprio “estilo de existência” (como diz Foucault). Estranhamente, o itinerário desviante de Belchior nos lega uma rara biografia, em que se distingue a grande luz do artista e o mero flash da celebridade midiatizada.

A produção literária sobre Belchior não pára de crescer; assim temos a chance de conhecer mais sobre a vida e obra desse nordestino glorioso: Belchior – Apenas um rapaz latino-americano (Jotabê Medeiros, 2017); Viver é melhor que sonhar – Os últimos caminhos de Belchior (Chris Fuscaldo & Marcelo Bortolot, 2021); Belchior – A história que a biografia não vai contar (Jorge Cláudio de Almeida Cabral, 2017); Belchior – O silêncio do amor (Russen Moreira Conrado, 2018), são a prova disso.

3. Renato Russo e Legião Urbana: interfaces do rock e política em Brasília

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No segundo ciclo dessa trilha poético-musical, remontamos o documentário-musical “Rock Brasília – Era de Ouro” (Vladimir de Carvalho, 2011).

Fazendo um recorte particular, focamos Renato Russo e a banda Legião Urbana, que desvela o som e a fúria da geração do rock em Brasília, resposta poético-musical agressiva, inteligente e corajosa no centro nervoso da política nacional, durante a ditadura militar. O trabalho documental do paraibano Vladimir de Carvalho ratifica uma percepção aguda dos grandes acontecimentos socioculturais, políticos nacionais, em que se mesclam a consciência política, a ética-estética atenta aos abismos sociais, o registro do evento histórico através de uma arte e linguagem memoriais que fazem a ponte entre gerações diferentes. Focalizando as bandas, Legião Urbana (que nasceu “Aborto Elétrico”), Plebe Rude, Capital Inicial, o cineasta captura as tensões e conflitos dos jovens de classe-média que, inteligentemente, romperam a membrana da zona de conforto do Plano Piloto (área urbana privilegiada de Brasília). Ligados no circuito mundial da música urbana mundial, trouxeram a “boa nova” para o Planalto, sob o signo do rock pauleira.

Como desabafo pós-adolescente, mal-estar geracional ou resposta inconformada ao ultraje da nação dilacerada, as canções das bandas, através de acordes elétricos, batidas fortes, frases iradas, demonstram a indignação face ao autoritarismo, corrupção, racismo, misoginia, homofobia, violência policial e os grandes abismos sociais. Os versos musicais da canção “Que país é este” inconscientemente traduzem esse estado de espírito. Não raro se descobre no noticiário da época as massas de jovens em fúria, carros destruídos, ônibus despedaçados, monumentos incendiados, Brasília em chamas, ao som das bandas de rock.

O filme de Vladimir de Carvalho, embora exalte a importância de vários roqueiros como Dado Villa Lobos, Marcelo Bonfá, Renato Rocha, Ico Ouro Preto, Eduardo Paraná (Legião Urbana), além de Dinho Ouro Preto, e vários depoentes, dá atenção particular às travessuras do rockeiro-cantor Renato Russo (1969-1996). Inflamado, o poeta traduz o berro, o êxtase e a agonia da dita “Geração Coca Cola”. Ele respondeu aos anseios, questionamentos e expectativas dos jovens inconformistas de classe média, imprensados entre um contexto repressivo e a (falta de) perspectiva diante do “Tempo Perdido”, atravessado pela AIDs, crise econômica e globalização predatória.

Note-se, o panorama musical dos anos 80 é alimentado pelos ícones já reconhecidos da MPB, belas canções e letras originais, o transe da música eletrônica, a batucada do sintetizador, o apelo new age, a trilha febril das discotecas, a zuada do show da Xuxa, e lá fora, os grandes astros da música pop (Madonna, Michael Jackson).

E como contraponto à música “bem comportada”, insurge a irradiação do espírito punk na música urbana mundial. Nos anos 80, a arte é contestação, contra o autoritarismo, em favor da liberdade anárquica e oposição ao consumismo (Sexy Pistols, The Clash, The Velvet Underground, Ramones). Isto vai se estender também no Brasil. O estilo punk (e o pós-punk, mais ameno, com The Cure, The Smiths, Joy Division, Bauhaus etc) ecoou também nas garagens, becos, subúrbios do Brasil (SP- BSB).

Estrategicamente, em sintonia com o espírito rebelde universal e a astúcia roqueira internacional, positivamente, as bandas se aproveitaram das frestas, brechas e fissuras num sistema aparentemente blindado, e injetaram a substância poético-musical que revigorou a cena urbana adormecida, com irreverência poética e sagacidade musical.

As baladas de Renato Russo – o “trovador solitário”, vocalista, letrista – são sucessos nas gravadoras (20 milhões de discos vendidos). Seu trabalho apresenta uma pauta ecopolítica (“Índios”), matizes românticos (“Faroeste Caboclo”, “Eduardo e Mônica”) e engajamento político-ideológico da arte, mas é sobretudo uma lírica contra o desamor do mundo, denúncia da solidão nas grandes cidades (“Strani amori”), sentimento de perda (“La solitudine”) e a mágoa dos desencontros amorosos (“A Tempestade ou O livro dos Dias”). Russo desponta como um dos cantores mais destacados de sua geração, sua poética urbana se inscreve como uma trilha sonora incontornável para os roqueiros brasileiros. Fez carreira meteórica e morreu devido a problemas da AIDS, no Rio de Janeiro, em 11.10.1996. Entretanto, permanece na memória acústico-musical, pela vivacidade e sensibilidade à questão gay, irreverência das letras, beleza poética, ritmo contagiante e sensibilidade inconformista das canções.

4. Chico Science, Mangue Beat, o último manifesto cultural brazuca do sec. XX

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No terceiro ciclo da nossa trilha poético-musical brasileira, inscreve-se o vídeo-documentário “Chico Science – Um Caranguejo Elétrico” (José Eduardo Miglioli Junior, 2016), como expressão de uma das últimas grandes manifestações artístico-culturais brasileiras do século XX.

Chico Science (mentor do movimento), Fred Zero Quatro, Renato L, Mabuse, Héder Aragão, Jorge du Peixe, Pupilo, Lúcio Maia, Toca Ogan, Gilmar Bola 8, Gustavo da Lua, Otto são os idealizadores incendiários da chamada cena Mangue Beat.

Trata-se de uma revolução musical ocorrida em Pernambuco, nos anos 90. O estilo é originalíssimo no aspecto poético-musical, pois assimila e ressignifica o coco, a ciranda, a embolada, o maracatu e o frevo, ritmos ancestrais na história da cultura musical brasileira, estes últimos, respectivamente, desde os séculos XVIII e XIX.

Ou seja, de modo similar as experiências da “antropofagia estética” (Semana de arte moderna, 1922) e da tropicália ou tropicalismo (anos 60), o movimento Mangue Beat mixa o antigo e o novo, o tradicional e o moderno, o nacional e o mundial; realiza a simbiose entre a tradição dos ritmos regionais com os elementos da cultura pop (rock’n roll e hip-hop), criando uma nova estética musical.

O “mangue” é um ecossistema típico da costa do Nordeste Brasileiro (particularmente do Recife), e é basicamente o habitat desses artistas. A ardilosa carnavalização da palavra “Mangue-Beat” consiste na articulação do território (mangue) com o vocábulo “beat”, que aqui assume uma conotação ambígua, pois indica tanto a batida (beat em inglês) no instrumento de percussão, quanto a palavra “bit” (o código binário da computação). O termo associa duas instâncias que habitam contextos distintos. A conjunção do antigo (o mangue) e o novo (o “beat/bit”) resultam num híbrido pós-moderno, que aponta para uma evolução, linha evolutiva que instiga a imaginação criadora dos artistas e da audiência do experimento artístico musical.

O “caranguejo” simboliza o modo de vida do mangue ou da lama dos manguezais; é fonte de subsistência, fonte de renda e meio de sobrevivência. Ou seja, são elementos muito ligados ao pensamento, linguagem e estilo de vida em comunidade.

Antes isolados da vida social, econômica e política da cidade de Recife e de Pernambuco, a articulação poético-discursiva-musical de Chico Science e da banda Mangue Beat gerou uma irradiação midiático-publicitária auspiciosa (vide o Manifesto de Fred Zero Quatro, denominado “Caranguejo com cérebro”).

Em Pernambuco, no Brasil e no Exterior, a alquimia poética e tecnológica do movimento revolucionou a cena musical a partir da conjunção dos elementos ecológicos, ambientais, geopolíticos. O simbolismo da lama é relevante no imaginário da comunidade, como substância que molda o estilo de vida, a arte de habitar o mangue, uma materialidade ligada aos ciclos da vida e morte, e suporte na construção dos versos: “Da lama ao caos, do caos à lama, um homem roubado nunca se engana”.

Assim, a “lama” é signo de denúncia da vida dos excluídos da cidade, dos “homens caranguejos”; aliás, uma recorrência à obra de Josué de Castro (autor dos livros “Geografia da Fome”; “Homens e caranguejos”).

Para Fred Zero Quatro (segundo depoimento no vídeo), “as artérias da cultura recifense estavam bloqueadas, Recife estava morrendo econômica e culturalmente e para revitalizar a cultura da cidade seria necessário misturar o tradicional e o moderno”.

A alquimia deu certo e alçou o movimento que era local, regional, setorial, ao patamar de uma vibrante mixagem da cultura periférica e tecnológica que se disseminou pelo planeta no início dos anos 90. E ocupou lugar de destaque no mercado internacional da produção musical, lançando os cantos, frases, sonoridades, jargões, sotaques, imagens e visualidades do nordeste brasileiro para as plateias mundiais. As cenas de Chico Science com Gilberto Gil, no palco do Central Park, Nova Iorque, nos anos 90, são históricas.

Para além das imagens de Chico Science e do Mangue Beat, registradas em dispositivos audiovisuais, há a riqueza e exuberância da prosa poética a ser estudada.

A obra constitui o “testamento de uma geração” e estrategicamente, capta as contradições sociais, econômicas e políticas, e invade o interior dos sistemas fechados, como crítica social e fina ironia: “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro”.

A importância de Chico Science e o Mangue Beat já é reconhecida pela academia, por pesquisadores, intelectuais, jornalistas, profissionais de arte, mídia e criação musical, de tal modo que vários livros já lhe foram dedicados: Do frevo ao Mangue Beat (José Telles, 2000); Chico Science & Nação Zumbi – Da lama ao caos (Lorena Calábria, 2019); MangueBeat (Julia Bezerra e Lucas Reginatto, 2017); Mangue Beat: a Cena, o Recife, o Mundo (Luciana Ferreira Moura Mendonça, 2021); Mangue Beat – A Revolução da Lama (Jeff Ferreira, 2020).

5. Rita Lee – A ovelha negra favorita dos roqueiros brasileiros

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Durante a elaboração deste trabalho me chegou a notícia da partida da cantora Rita Lee (08.05.2023). Eu me lembrei, então, do programa TV Mulher, na Rede Globo, anos 80: cenário cor de rosa, ambiente cool, ameno e descontraído. Entre o riso e o siso do padrão de qualidade, a voz de Rita Lee descortinava a caretice da classe média com seus versos: “Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra”. Aquele instante eterno da poesia serviu como aprendizagem e libertação de séculos de repressão sexual; lições matinais em filigranas, nos versos cantados para meninos e meninas com franqueza e sinceridade.

Mirar a obra complexa de Rita Lee é mergulhar no amplo ecossistema poético-musical brasileiro, irrigados por fluxos de inteligência e criatividade, com a proeza de educar as mulheres (e homens), colocando a alma feminina no centro da cena. Eis o contributo para uma certa revolução dos costumes, numa nação marcada tristemente pelo machismo, autoritarismo patriarcal e violência da dominação masculina.

Tendo surgido nos festivais de música dos anos 60, com o grupo Os Mutantes, em articulação com o movimento tropicalistas, Rita Lee (1947-2023), a “rainha do rock brasileiro” fez carreira solo com sua banda Tutti Frutti (nos anos 70). Com uma “pegada” irônica e ácida, a cantora-compositora deixou sua marca indelével como feminista (sem perder o humor), através das canções memoráveis: “Ovelha Negra”, “Mania de você”, “Lança Perfume”, “Banho de Espuma”, “Erva Venenosa”, “Amor e Sexo”, “Flagra”, “Doce Vampiro”, seus hits mais expressivos, a maior parte com o marido e parceiro musical Roberto de Carvalho, com quem lapidou uma sedutora poética da sensualidade

Além de cantora-compositora-poeta, foi atriz de cinema, de televisão, escritora de livros infantis (ela gostava dos erês, tinha uma vibe infantil) e nos deixou duas biografias: Rita Lee – Uma Autobiografia (2016), e Rita Lee – Outra Autobiografia (2023).

Conviria relembrarmos a sua amizade com Elis Regina, que a salvou da cadeia quando estava grávida, no tempo da ditadura (1976), e Rita Lee retribuiu lhe dedicando a canção “Alo alo marciano”, grande sucesso na voz de Elis (1980). Cumpre relembrar igualmente a sua extraordinária articulação com vários cantores-compositores brasileiros, como João Gilberto, Gilberto Gil, Caetano Veloso (que a consagrou como “a mais completa tradução de Sampa”), além de Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Titãs, e a sua amizade anarquista com Hebe Camargo. Cumpre destacar sua música “Amor e Sexo” (com letra de Arnaldo Jabôr) que consiste num tratado poético sem precedentes na história da cultura musical, sobre as relações afetivas, amorosas e sexuais entre os seres humanos.

Mas sobretudo, deve-se sublinhar a “confraria feminina”, com Gal Costa, Cassia Eller, Paula Toller, Adriana Calcanhoto, Zélia Duncan, com quem compôs um atrevido hino libertário para as mulheres, no rock e na MPB, conforme podemos ler nos versos:

Mexo, remexo na inquisição /Só quem já morreu na fogueira /Sabe o que é ser carvão. Eu sou pau pra toda obra / Deus dá asas a minha cobra / Minha força não é bruta / Não sou freira, nem sou puta / Porque nem toda feiticeira é corcunda / Nem toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho que muito homem…” (Pagu. Rita Lee & Zelia Duncan, 2000)

Focamos assim três grandes arcanos da poética musical brasileira, que deixaram as marcas fundadoras de um espírito comum inconformista. Cada um, em sua década de atuação, realizou experiências revolucionárias, no sentido artístico-musical, ético-político, existencial. E coroamos o “ensaio”, referindo um outro ciclo musical explosivo e radical da produção cultural, com Rita Lee, “a grande mãe do rock BR”. Embora ela tenha morrido de câncer este ano – de maneira visionária – elaborou uma substância acústico-poético-musical para além “dos anéis de Saturno”, para além do tempo.

Como quem ensina o desapego e a perda do medo da morte, a poética de Rita Lee, para além dos limites de espaço e tempo, tem acolhido vastas legiões de fans e admiradores. Constituição de uma comunidade simbólica que encontra na sua arte um elixir, bálsamo, um modo de transcendência. A música de Rita Lee consiste numa trilha sonora sentimental que torna a existência mais bela, mais rica, mais suportável: “… enquanto estou viva e cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz” (Rita Lee, disco Saúde, 1981)

Como espécie de farsa de Ariano Suassuna ou charge dark de Angeli, imaginamos o feliz encontro dos “rebeldes malditos”, Belchior, Renato Russo e Chico Science com Rita Lee no céu, porque não dá para pensar em Rita Lee, sem alegria e sem humor.