‘…e diz que, cumo a cacimba dum rio que o verão secou, meu ‘zóio chorô’ tanta ‘mágua’, que hoje sem água nem responde a ‘dô’’
Zé Dantas
O ‘Dotô’ foi ‘atender a um chamado’ no Sítio Riachão, aos pés da Vermelhona, sopé da Serra do Bongá, que separa o Ceará da Paraíba. A fama dele tinha acompanhado a penicilina: Tudo se resolvia com uma injeção. E ele era conhecido por saber aplicar levemente. Por vezes, até exagerava nas massagens.
‘A cavalo num burro baixeiro’, o ‘Dotô’ cantou toda a descida da Serra de Mararupá. A trilha começava com ‘Légua Tirana’: ‘Ó que estrada mais comprida. Ó que légua tão tirana…’
Nem se deu conta, estava chegando no baixio do Sítio Riachão do Cabral, onde uma cruz abandonada suplicava um ‘Pelo-sinal’ ou um ramo de alecrim, trazendo da memória um poema.
Sorte do ‘Dotô’; logo na curva, onde a dúvida poderia levá-lo à esquerda, encontrou com uma moça e uma menina carregando umas laranjas-lima mimo do céu.
A moça se vestia de simples: um vestido de algodão, um grande chapéu de palha e um cinto de couro, de onde se destacava uma arma num coldre.
Ele nem se espantou. Parecia estar no seu mundo, e foi logo perguntando:
• Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Bons dias, moça! Por caridade, você pode me dizer onde fica a casa de Seu Neco?
A resposta veio, sem surpresa:
• Bons dias! O senhor é o ‘Dotô’ da Farmácia do Mararupá, né? A casa de seu Neco é a primeira à direita, depois do curral, logo na curva. Tem um menino doente lá.
Identificado, o ‘Dotô’ foi rápido:
• Sim! Sou da farmácia. Obrigado. Mas que lima bonita. Pode me dar uma?
• Pode levar até o balaio todo.
• Não. Nesse caso, basta umas três. Eu chuparei depois. Você mora aqui?
• Sim. Eu sou ‘Filha de Maria’.
A senha pareceu familiar e eclesial. A mãe dele também era ‘Filha de Maria’.
O ‘Dotô’ seguiu cantando, agora para ser ouvido, com o olhar às costas; atendeu o paciente, que era um garoto, e voltou pelo caminho com a mesma sonoplastia de época: ‘Furaro os zóio do Assum Preto…’ À sua direita, passando em frente à casa grande, vizinha ao engenho, nem se deu conta que era filmado e, talvez, ouvido nas suas músicas. Sua fama se espalhava em ondas sonoras.
No sábado seguinte, dia da feira, o ‘Dotô’ estava sentado na cadeira, apoiada apenas em dois dos quatro pés, encostado na parede; assobiava uma canção do rádio: ‘Paraíba, masculina, muié macho, sim, senhor…’, quando notou que uma moça de cabelos grandes tentava dominar um animal. O animal estava meio arisco e próximo tinha um monte de varas. Preocupado que a moça fosse jogada em cima, ele correu para ajudar. Mal se aproximava, quando um homem interveio sorrindo, pegou a corda das mãos da moça, olhou pra ele e disse:
• Não há de ser nada, ‘Dotô’. ‘Nós resolve’. Obrigado.
A moça parecia a mesma do Riachão. De cabelos soltos e vestida com uma elegância diferente, chamou mais atenção.
O Senhor que interviera na cena tinha um olhar agradável – parecendo falar com sorrisos.
Vendo que a moça punha as mãos na barriga, o ‘dotô’ se aproximou mais e perguntou:
• Você está bem? O animal acertou em você?
E ela respondeu, sob o sorriso sonoro do acompanhante:
• Estou bem. Obrigado. É que eu senti uma pequena dor. Deve ter sido do esforço. Mas já tem uns dias que eu sinto.
• Tá certo! Qualquer coisa, estamos na farmácia.
Envoltos em sorrisos, o ‘Dotô’ e a moça se despediram.
Três ou quatro dias, depois, chega na farmácia aquele senhor do sorriso, que acompanhava a moça, com uma urgência para o ‘Dotô’:
• Dona Maria pediu que o senhor fosse lá. Sinhá Badia está doente e precisa de um exame. O senhor pode ir ao Riachão?
• Sim. Respondeu o farmacêutico. Posso ir, sim. Vou preparar o animal e a gente vai, agora mesmo.
Entrando na farmácia, ele avisou ao seu irmão mais novo, Itamar, que iria a um atendimento; pediu pra alguém buscar o animal na ‘manga’, pegou os arreios e preparou seus instrumentos de trabalho. Tudo pronto, partiu com o senhor que viera chamá-lo.
De saída, começou a vender o caminho melodicamente. Mal terminou uma música, começou a ouvir, do seu companheiro de jornada, umas canções sussuradas, que não conhecia, mas que lhe impuseram um silêncio ativo. O senhor entoava cânticos de lamento, do seu lugar, de onde vieram seus ancestrais, trazidos à força.
O ‘Dotô’ se encantava.
O senhor cuidava de rir entre uma canção e outra, olhando sempre para o ‘Dotô’.
A estrada se deu tão curta, que, desperto, o ‘Dotô’ estava apeando do animal, em frente à casa.
• Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Bons dias.
• Para sempre seja louvado. Entre, ‘Dotô’. Seja bem-vindo. O senhor quer lavar as mãos e o rosto? Aqui tem uma bacia e uma toalha. Quer uma água, um café, ou uma tapioca?
O ‘Dotô’ entrou, lavou as mãos e reparou-se no espelho. Estava ali um rapaz de seus 18 anos.
• Onde está a doente? Posso vê-la, agora? Perguntou.
• Pode. Está no quarto. Respondeu a dona da casa.
O ‘Dotô’ entra no quatro e lá estava a mesma moça.
• Bom dia, moça. O que houve? É ainda aquela dor, que você se queixou na feira?
• Bom dia. É. Mas está aumentando e não para mais. Desde a feira que estou sentindo a dor ficar mais forte e me deixando fraca.
Ainda no dia da feira, o ‘Dotô’ tinha lido sobre o assunto nos livros que o pai dele deixara na farmácia e naqueles tomos de Chernovic. Se sentia pronto para o atendimento. Ao fazer as perguntas de sempre, para retirar da anamnese os fundamentos ao diagnóstico, ele parecia ter entendido o problema. Faltava-lhe, pelo que estudou, executar a ‘Manobra de Blumberg’.
Avisou que sairia do quarto, para que a paciente descobrisse o abdômen, porque iria fazer um exame final e definitivo.
A mãe da moça entrou no quarto e preparou a cena.
Ao voltar, o ‘Dotô’, que ficara lá fora conversando com o senhor dos risos largos e com os parentes da moça, notou que o quarto estava incensado de perfumes raros e que a moça, de barriga exposta, cobria-se com tecidos refinados compostos de finas e bem tratadas obras de crochê.
Indo ao ‘Ponto de McBurney’, o ‘Dotô’ concluiu preciso e chamou a familia.
• Posso até estar errado, porém o caso é de apendicite. Merece um tratamento urgente, talvez cirúrgico. Recomendo retirá-la, o mais breve possível, para o Crato. Seria bom levá-la ao Barro, de uma forma que não agrave a situação.
Dona Maria o ouvia, respeitosamente, já se preparando para respondê-lo.
• Então, vamos providenciar, agora mesmo. O Senhor pode acompanhá-la?
O ‘Dotô’, se sentindo o mais médico entre tantos que existiram, respondeu rápido, como a idade recomendava:
• Sim! Aceito acompanhar a moça, com certeza. Só preciso voltar à farmácia e avisar ao meu pai, em Mauriti, que estou indo com vocês. Vou me preparar e voltarei no começo da noite ou, no mais tardar, amanhã bem cedinho.
O pai do ‘Dotô’ era conhecido em toda a região; era, a bem dizer, a salvação das pessoas necessitadas: era o Doutor Oscar Fernandes Sobral. O consentimento dele era metade do tratamento.
Despediu-se de todos e saiu da casa. Dona Maria recomendou ao homem do sorriso que o acompanhasse, só retornando junto com ele. No caminho, a tensão das cordas do tempo poupava-se da musicalidade, e o ‘Dotô’ falava com o companheiro de estrada de sua preocupação quanto a enfermidade e a urgência necessária.
Chegando em casa, avisou ao pai e falou a alguns amigos sobre o trabalho que desempenharia. O anúncio à cidade de Mauriti (e aos seus colegas rapazes) quanto ao acompanhamento de uma moça, para um tratamento, fez o ‘Dotô’ descumprir compromissos de namorado. A jovem com quem dividira a escola, no Externato Frei Xisto, desde a infância, mandou-lhe um bilhete encerrando tudo.
Era o custo. Pensou.
Dormiram na vila de Mararupá, na farmácia, e no outro dia, chegaram cedo; antes do sol se apresentar, estavam o ‘Dotô e o companheiro de estrada tomando o café quente da casa grande e fumando os seus cigarros na varanda, ao testemunho dos pés de bougainville.
A família já tinha arrumado um jeito de levar a paciente até à cidade, da forma mais cômoda possível. O caminho era curto, mas tinha a Serra do Abrão para ser vencida.
E foram!
Dona Maria cobriu a viagem e o propósito com o Rosário Apressado da Imaculada Conceição, que só era invocado em casos extremos.
Na cidade do Barro, esperaram a chegada do transporte que os levou até o Crato.
Encaminhada ao hospital, a moça pediu que avisasse às freiras do Colégio Santa Teresa, especialmente à irmã Marcelina, com quem ela estudara, que ela estava na cidade, doente e para ser operada no hospital.
Atendida com urgência, a moça chegou ao médico que a questionou sobre os sintomas e a enfermidade. O ‘Dotô’ antecipava-se em tudo. Então, o médico, dr. Macário de Brito, perguntou:
• O senhor é estudante de medicina?
Para essa pergunta, o ‘Dotô’ nunca tivera a sonhada resposta, mas foi sincero:
• Não. Sou apenas um curioso atendente. Quando digo ao senhor que o caso sugere uma apendicite, é porque…
E foi se largando a destilar o que havia lido nos livros.
O médico, então, devolve com galanteio:
• Pois, o senhor está certo, e fez bem em trazê-la. É um caso de cirurgia. Vamos preparar a paciente para operá-la o mais rapidamente possível. Logo que sejam aplicados os antibióticos necessários para amenizar a inflamação. Quero a sua companhia na sala.
Feita a cirurgia, a paciente foi retirada ao quarto, onde ficou por uns dias, até receber alta.
Uma das freiras do Colégio Santa Teresa chegou para visitá-la. Encontrando, no quarto, com aquele rapaz, ela perguntou quem era. A moça, convalescente, respondeu:
• É um farmacêutico que está me tratando. Mora na Vila de Mararupá. Veio me acompanhando, a pedido de mãe.
A freira riu como ria o senhor que a acompanhava, e conversou mais amenidades.
Eram, o ‘dotô’, Irapuan Sobral, filho de Oscar e Manoela, e, a moça, Neuza Cabral, chamada Badia, de Zezé Araruna e Sá Mariinha do Cabral, moradora do Sítio Riachão, da vila do Barro.
Não voltaram os mesmos ao Riachão. Badia não tinha mais o jeito arisco das onças, nem a candura do convento de Milagres, onde estudara; exalava tanto amor no olhar que lembrava a anotação de Tiruvaluvar em ‘Le livre de l’amour’: ‘Se regarder en étrangers, d’un regard neutre, est propre aux amoureux!’
As irmãs dela, como a companheira de convento, que a visitara no hospital, sentiram a diferença – até nos cabelos.
Ali, Irapuan e Neuza se conheceram perante Deus e seriam namorados por toda a vida.
Era o ano da música ‘A Letra I’, do Gonzaga. As cartinhas levadas pelo senhor subiam a Serra do Mararupá sempre que havia oportunidades. O caminho ficou tão curto que até as pedras sabiam deles dois. Para melhor dizer, sabiam também: os caminhos, riachos, plantas, xícaras, cafés, muitas conversas e músicas.
Conceiça e Oscarzinho juram que o senhor, o assistente de Badia, era um anjo, que assistia também perante Deus. A risada dele nunca deixou a Casa do Corredor do Céu. Cá na terra era chamado de Zé Luiz.
Irapuan Sobral
Poeta. Compositor. Criatura de Deus. A igualdade fraterna universal lhe basta.