É sobre a saudade. É sobre a falta. É sobre a presença da ausência. É sobre o tempo, sobre a vida e a morte que acontece o espetáculo Mundaréu de Mim, um musical infantil apresentado no Parque da Água Branca, em São Paulo, e que tem Juliana Linhares brilhando como atriz, cantora e assistente musical. É sobre o vazio que há dentro de alguém que perdeu alguém. Um furo, um buraco na alma, é o que deixa quem parte na lembrança afetiva de quem fica. Acordei com o vazio de uma ausente existência em minha vida, e esse nada que há em mim é o meu próprio pai, que há cinquenta e dois anos, no dia de hoje, domingo, vinte e dois de outubro, se foi. Para sempre. Vivi com ele durante quinze anos. Tenho memórias envoltas em afetos e desafetos que são contraditórias entre si, mas que são resultantes do homem que me proporcionou a vida, o homem com as suas virtudes e desvirtudes, o meu pai. A última vez que o vi, deitado no leito do hospital onde faleceria dali a horas, eu e ele sozinhos no quarto, ouvi, sem compreender direito o momento, ele me dizer: “meu filho, seu pai vai morrer”. Para em seguida me dar o seu último conselho: “estude”.

Não sei se é alguma trama secreta urdida no firmamento, mas o fato é que o espetáculo de hoje foi ao encontro do sentimento que comigo amanheceu e não me deixou. Em algum momento pensei que o fato de eu não ser alguém dotado de virtude mística ou mesmo pendente a acreditar na interferência de um imponderável, seja o que for, horóscopo, búzios, cartas, nenhum oráculo, isso também talvez releve em mim uma alma deserta de crença, de disposição subjetiva para considerar algo como certo ou verdadeiro, mas o certo é que o espetáculo provocou o sentimento de separação que a morte e a vida fatalmente nos impõe, embora ao final tenha deixado a sua mensagem de otimismo e de superação: gente é pra brilhar.

É sobre a separação dos que se amam. Quem vive a separação experimenta uma elaboração paradoxal do luto. A separação é algo que nos aproxima do mais intenso sentimento da morte, movimento que vai ao encontro da tese de Igor Caruso em A Separação dos Amantes. Para garantir a sobrevivência, provoca-se a morte da consciência de um ser vivo dentro de outro ser vivo. Ou, eu diria, mesmo que empiricamente, o apagamento da consciência de um ser vivo sobre o outro, morto. Mas não há o esquecimento, é o que nos diz o espetáculo o Mundaréu de Mim. Não há o apagamento definitivo: o outro, morto, amigo, parente ou amante, vive dentro de quem vivo está, mesmo que por um tempo esteja ausente nas lembranças. Ao menos é isso o que eu sinto sobre o meu pai em mim. Apaguei a sua memória. Dele me lembrei apenas dos terríveis ataques de violência que o acometiam contra os filhos, homens ou mulheres, todos nós estávamos sob o peso de uma tirania paterna muitas vezes apavorante. Mas com o tempo, com a velhice pendendo sobre mim mesmo, com os anos de vida que tenho, já ultrapassando de muito os que o meu pai teve, aos poucos chegaram lembranças do outro lado daquele homem que inspirava medo. Do fundo de minha memória chega o homem cuidadoso com a prole, cioso dos seus, aos quais, por apreço ou apego, zelava. Não posso esquecer que aquele homem me deu, a meu pedido, sem muita fé de que eu o iria ler, o livro de Dostoyevski, Os irmãos Karamazov, quando eu tinha cerca de quatorze anos de idade. Aos poucos as boas lembranças foram substituindo as más, de modo que eu me vejo pequeno, montado sobre os seus ombros, enquanto ele caminhava, gostava de caminhar, e depois, eu já maior, caminhando ao seu lado pelos matos que ele amava. Vejo o menino que fui encontrando o pai na praça de Bananeiras onde morávamos, e de uma foto que fizemos juntos, e esta é a única imagem que tenho sozinho com ele. Vejo tudo isso em minha lembrança e vejo que há subjacente o amor, sufocado depois pela dor. Esses anos todos da nossa separação, precisei lamentar, precisei esquecer, precisei reviver, precisei perdoar e me perdoar, precisei recompor o sentimento esmaecido para hoje, cinquenta e dois anos depois, dizer ao meu pai que vive dentro de mim, sim, eu te amo, meu velho, eu te amo, meu pai, mundaréu de mim, gente é pra brilhar.