Sinopse: “Motel Destino, dirigido pelo renomado diretor Karim Aïnouz, é um filme ambientado em um estabelecimento de beira de estrada no litoral cearense. A trama gira em torno de Heraldo (Iago Xavier), um jovem de origem humilde que chega ao Motel Destino e transforma radicalmente a vida dos que ali habitam. O motel, administrado pelo temperamental Elias (Fábio Assunção) e sua esposa Dayana (Nataly Rocha), torna-se o palco onde as crônicas da realidade brasileira se entrelaçam. Heraldo, um membro foragido de uma gangue, desperta a curiosidade de Dayana, iniciando uma perigosa dança de poder e desejo entre eles. Em meio a esse cenário, um plano ousado de liberdade começa a se desenhar, retratando de forma íntima a juventude nordestina cujos sonhos foram sufocados por uma elite opressora. O longa é quase uma releitura íntima de uma juventude prejudicada por uma elite sem consciência de classe, onde a opressão prevalece, contra a qual a insubordinação e a revolta são palcos para uma saída possível”. (Adoro Cinema, 2024)
Há estilos de cinematografia no Nordeste Brasileiro que parecem ter encontrado o seu caminho, aos troncos e barrancos, às vezes sem saída, mas frequentemente animado pelo sonho da inteligência, astúcia e originalidade. Assim, para além da distopia da “vida sem esperanças” na periferia das cidades, há flashes na grande tela que acenam para uma imaginação da felicidade que salta do inconsciente dos protagonistas. A vontade de fugir para um outro lugar, o desejo de liberdade e a busca da realização em outro horizonte possível. Isto se epifaniza nos filmes do cearense Karim Anouz: em O Céu de Suely (2006), em que a protagonista (Hermila/Hermila Guedes) compra uma passagem para o lugar mais longe possível; em Praia do Futuro (2014), o protagonista salva-vidas (Donato/Wagner Moura) se envolve afetivamente com um alemão e viaja ao “velho mundo” para reiniciar uma nova vida, esquecendo os laços familiares do passado, e em Motel Destino (2024), o protagonista (Heraldo/Iago Xavier), perseguido pela sua gang, esconde-se num motel de beira de estrada, enquanto especula uma maneira de fugir daquela situação de sufoco.
Em meio aos seus sonhos, devaneios, pesadelos, atormentado pelos fantasmas de uma vida criminosa e pela morte violenta do parceiro, após descumprir involuntariamente o acordo de participar de um assalto, Heraldo se envolve com Dayana/Nathaly Rocha, o que o coloca em risco, pois ela é a mulher do dono do Motel, um “cafuçu” cruel, ciumento e possessivo (Elias/Fábio Assunção).
O cinema de Karim Anouz rememora os triângulos amorosos malditos do cinema, como no filme “O destino bate à sua porta”, em duas versões (1981, 2021), e obras anteriores, onde os dramas e tragédias amorosas criam a tensão dramática na cena.
Assim, Heraldo vive sob o signo do medo, desejo de fuga e complexo de perseguição, embora deseje ficar com Dayana. Uma existência afetada pelo medo e terror, mas animada pelo fogo da paixão que se mantém ao longo do filme, no fio da navalha.
Então, em cena se projeta a agonia de um jovem fugitivo (de 21 anos), que largou seu bando (pois fazia parte de uma gang de criminosos), a sua imersão em um motel paupérrimo, um ambiente claustrofóbico e mal iluminado. Lá fora, há o cenário deserto, a estrada, a periferia, uma atmosfera espectral, caótica, insólita, ameaçadora
Inusitadamente, o som ao redor dentro do Motel Destino se irradia – quase estereofonicamente – através dos gritos, sussurros, suspiros e gemidos orgiásticos. De vez em quando, o patrão se torna um voyeur; pelas brechas espiona os casais no coito. Mas, isso é negado ao público, que não vê quase nada de pornô num filme de matiz erotizado.
“Ao diretor, o direito à transgressão”. Isto pode ser um ato virtuoso numa cultura como a nossa, cujo modelo da sexualidade e libido dominante se tornou midiatizada, capitalizada, mercantilizada, como denuncia Pasolini na obra “Jovens Infelizes”.
O cineasta conferiu um tratamento original às formas da “impureza” (Scarpetta). As relações sexuais no motel e os corpos copulando incessantemente se fazem escutar através de uma sonoridade exaustiva de orgasmos quase estereofônicos. Para além das noções do erotismo, da sensualidade, da pornografia, o filme de Anouz transcende as limitações moralistas e fotografa a fome dos corpos, e faz a exibição acústica sem pudor dos “machos e fêmeas no cio” a se amar carnalmente sem cessar, “como dois animais”
Em cena, mostra-se a “parte maldita” (como escreve Bataille, ironizando a moralidade burguesa), ali pulsa a “bruta flor” da sexualidade humana. A protagonista é bem dotada de atributos físicos, o ator Fábio Assunção está em plena forma e a atuação do jovem ator Iago Xavier contribui para a inserção do sexy appeal na trama de uma vida precária à beira da estrada. Logo, há o elogio à beleza da juventude, à explosão dos hormônios jovens, à sensualidade que brota da pele erotizada. Mas aí atua a navalha da moralidade, do machismo e do patriarcado que separa os corpos magnetizados pelo desejo (como se mostra no swing frustrado entre Heraldo, Dayana e Elias).
Uma das surpresas do filme ocorre do meio para o final, pois se torna quase um trilher policial, suspense, terror, marcado pelas fugas e perseguições, mortes súbitas e desovas. Tiros, incêndios, crashes automobilísticos refazem as emanações do cinema noir americano, um contraponto imprevisível na noite do litoral do cinema nordestino. Motel Destino já foi referido adequadamente como um filme de gênero “neon-noir-tropical”.
O cenário construído em cores fortes, sombrias, claustrofóbicas dá o tom à ambiência da representação (uma obra de alto calibre dramatúrgico). Em outro registro, o aforismo de McLuhan “o meio é a mensagem” cabe aqui como uma luva. A direção de arte, decoração, iluminação, guarda roupa, intensificam e apuram a significação estética e ético-política do cineasta, na construção do ambiente ácido, opressivo e sufocante. Logo, além da embalagem, o artifício técnico e a plasticidade reforçam o sentido da obra.
As tomadas ao ar livre no litoral cearense flagram as falésias, a geografia em abismo, os barrancos profundos: um desafio da natureza selvagem à fragilidade das vidas humanas. Há uma beleza estrondosa nesse panorama belo, insólito e assustador. A excelência de um terreno que se debruça à beiramar, em uma praia quase primitiva. Hostil, perigosa e intempestiva, a natureza dos rochedos, pedras e grutas que formam a substância íngreme daquela praia é similar a natureza bélica, violenta e destrutiva da comunidade patriarcal, que torna a existência dos jovens pobres sempre mais difícil e os empurra para a criminalidade. Todavia, num flash rápido de felicidade, há aqui um protagonista (e um cinema) que sonha, apesar do medo, das grades, das feras humanas e outras adversidades.
Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).