Desde os anos 70, a Rede Globo atuou como a indústria cultural brasileira fazendo a cabeça de milhões. Era o tempo da ditadura militar, quando a EMBRATEL forjou a integração nacional, penetrando o Brasil profundo, o Nordeste, a Amazônia, os sertões e o litoral (como se vê nos filmes Bye Bye Brasil (Caca Diegues, 1980) eIracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky,1974). No plano da educação o projeto MOBRAL substituiu o movimento de alfabetização (Método Paulo Freyre) e nessa direção os cursos de Supletivo viriam a arregimentar a formação dos estudantes para ingressar no mercado, em detrimento da Ética, consciência crítica e esclarecimento das massas. Os deserdados da terra, pobres, pretos, favelados, semterra, semteto, sem atendimento das necessidades básicas, sem direitos humanos, como cidadãos de segunda classe, foram cooptados – por um lado, pelo narcotráfico, e por outro lado pela milícia que promete segurança aos desvalidos, como na novela Duas Caras (2007), onde Antônio Fagundes é um miliciano.

Caberia lembrar, como o imaginário coletivo das populações mais pobres, que nos anos 80 fora objeto de preocupação da Teologia da Libertação (desmanteladapelo clero conservador e pela ditadura), posteriormente – sem amparo da direita e da esquerda, foi abduzida pela Teologia da Prosperidade prometendo segurança e conforto espiritual à custa do dízimo pago às igrejas neopentecostais. Tudo isso se mostra na polêmica minissérie Decadência (1995), a trajetória de ascensão e queda de uma família tradicional e de um pastor evangélico obcecado pela promoção social e política. As gestões governamentais da esquerda (Lula e Dilma Rousseff) se empenharam bem intencionadamente em projetos de inclusão social, apesar do contexto de uma economia globalizada com matizes neoliberais. Assim, assistimos o fenômeno das classes emergentes, com poder de consumo e acesso aos bens materiais (consumo, condomínios de luxo, viagens de avião) para desespero daelite do atraso” e das classes médias sempre com aversão aos pobres, vistos como empecilhos à sua ascensão social. Isto se mostra dramaticamente nas novelas Senhora do Destino (2005) e Avenida Brasil (2012), o último estouro de audiência da telenovela das nove, focando as classes emergentes.

Então veio a popularização da internet, redes sociais e séries na NetFlix, depois na Globoplay, as narrativas audiovisuais em pacote, sob encomenda, as maratonas (ou seja, o hábito de assistir as temporadas de uma só vez). Isto é, mudanças no modo de produção, distribuição e consumo das narrativas de ficção seriada. Ampla liberdade para os autores se aprofundarem na elaboração das tramas, incluindo uma mirada bem crítica na representação dos centros e periferias sociais dos Brasis, de norte a sul, nordeste e sudeste do amplo território nacional, como se vê – por exemplo – nas ousadas séries Justiça (temp. 1, 2016; temp. 2, 2024) e Os Outros (temp. 1, 2023; temp. 2, 2024). Em suma, um flagrante dos grandes abismos sociais pelas artes audiovisuais.

Aqui tratamos especificamente da série Os Outros, um ácido olhar sobre os condomínios “de luxo” da Barra da Tijuca (zona oeste do Rio de Janeiro), lócus privilegiado das classes emergentes, novos ricos, milicianos, traficantes, evangélicos, com as tensões, crises e conflitos sociais no Brasil do século XXI, onde o machismo, misoginia, racismo, preconceito de classe, xenofobia, guerrilhas políticas, morais e religiosas explodem, trazendo à tona os distúrbios familiares, geracionais e sociopolíticos recentes.

Sinopse da 1ª temporada: A temporada começa com uma briga entre os adolescentes Marcinho (Antonio Haddad) e Rogério (Paulo Mendes), que moram no mesmo condomínio na Barra da Tijuca, bairro da zona oeste do Rio. Essa briga gera um climão entre os pais dos meninos, que tomam as dores dos filhos com atitudes conflituosas”.

O foco incide sobre a (des)estrutura familiar no Brasil do sec. XXI, no modo como a educação dos filhos foge ao controle dos pais, os jovens assimilam e reproduzem as formas da violência extrema. A maneira como uma mãe-coragem (Cibele/Adriana Esteves) defende o filho com unhas e dentes das garras de (Sérgio/Eduardo Sterblitch), ex-policial, miliciano, criminoso, traficante, que serávereador. O jeitinho como uma síndica (Lucia Viana/Drica Moraes), arrivista, racista, classista, se emaranha nas teias da corrupção, se envolve com milicianos-traficantes e termina sendo literalmente explodida junto com um bujão de gás. E a parte romântica do melodrama fica por conta da paixão amorosa dos jovens (Marcinho/Antonio Haddad e Lorraine/Gil Fernandes), filhos de famílias rivais, vítimas de um contexto ético-político desajustado.

Não sendo literatura nem teatro, uma apreciação da telessérie, exigiria um olhar semiótico, capturando a significação dessa representação/simulação fictício-audiovisual da realidade da zona leste carioca. Ali se mostra um microcosmo do Brasil na era do bolsonarismo, em que tudo parece se resumir a uma encenação do horror contemporâneo (qualquer semelhança com as narrativas da mídia sobre o condomínio “Vivendas da Barra” não é mera coincidência). O olhar, o corpo em cena, o gesto, a fala, a performance dos artistas é o grande trunfo da produção. Mas, sendo arte audiovisual, convém notar a fotografia em drone das alturas, as quedas, as explosões, os efeitos drásticos do claro/escuro, a claustrofobia da vida familiar nos condomínios, o tédio da paisagem deserta ocupada pelos veículos em trânsito, a melancolia dos shopping-centers, os (novos) cenários pós-modernos em ruínas que não tem mais o glamour da ex-cidademaravilhosa. Uma exposição da vida líquida em estado de desintegração.

Em cena, a fantasmagoria e os espectros do futuro que parece ter chegado sem promessa de felicidade. Mas a surpresa da obra reside justamente na predisposição e astúcia em construir uma estética da ambiência brasileira e latino-americana depois do futuro, depois da Covid, após a gestão do “inominável” na Presidência da República e o seu séquito de horror. O seu êxito talvez resida também em mostrar as vísceras da necropolítica, a vontade de poder que mata, a cartografia de uma sociedade sem compaixão, que perdeu a faculdade de sentir afeto pelo Outro e se tornou refém da dissonância cognitiva (a perda de referência do mundo real, a paranóia, o reforço das ideias preconcebidas, distópicas, negacionistas).

Despontando como uma das séries de maior audiência naGlobo Play, o produto migra para a TV aberta em 2024, atualizando uma moldura sinistra do Brasil na ficção. Assim, a TV que fora, há décadas, uma janela da família cordial, pacata e equilibrada, torna-se canal de expressão de uma distopia profunda, onde os afetos regressivos do medo, do ódio e do ressentimento se expandem e se intensificam. Destarte, o infoentretenimento audiovisualda teledramaturgia, outra vez, distingue-se da imagem doBrasil mostrado no Jornal Nacional (que consiste num mercado de notícias, uma mera empresa neoliberal).

Nunca é demais relembrar que o Jornal Nacional sempre foi reacionário e a teledramaturgia é progressista. A série Os Outros abre amplas janelas para uma contemplação do caos carioca e nacional, em streaming, um riacho de imagens e sons em escala global. Uma poética do contemporâneo marcada pelo desafeto, cancelamento e criminalidade. Os Outros é uma obra de psicologia social mostrando como na era do egoísmo e narcisismo extremo.Mostra as pessoas vivendo nas bolhas dos condomínios fechados, que veem “os outros” como inimigos a serem exterminados, e exibe as suas próprias vivências sem virtudes, sem empatia nem solidariedade, o que as corróipor dentro e as aniquilam.

Restaria saber se quando a ação política – sem projeto social nem econômico nacional – se tornou um mero efeito do “laikar”, “lacrar”, “lucrar”, a ficção seriada, que já foi bússula e termômetro do comportamento social das famílias e grupos sociais, ainda teria o poder artístico, ético-político, de levar o público a se ver, se reconhecer, fazer a autocrítica e melhorar. Sempre há tristeza quando se experimenta um tipo de existência moldada pela midiatização (seja pela audiência das telenovelas na TV aberta, seja pelas maratonas das séries, seja pelo vício frenético da imersão nas bolhas das redes sociais; principalmente numa nação de educação rasa e pouco habituada à literatura, ao teatro e outras fruições culturais).Todavia ainda apostamos na inteligência e sensibilidade dos autores, atores e demais expoentes inventores das artes audiovisuais que não deixam de surpreender, na captura e denúncia do “real”, artisticamente, esteticamente, poeticamente.

A segunda temporada de Os Outros já estreou no GloboPlay. Está sendo exibida em pacote de três episódios homeopaticamente e supõe-se que trará novas surpresas.

Sinopse: A trama vai mostrar conflitos de mais um condomínio de classe alta na Barra da Tijuca, bairro do Rio. Entre os novos personagens, está Maria, a misteriosa moradora que se aproxima do casal formado por Raquel (Letícia Colin) e Paulo (Sergio Guizé).

De saída, a narrativa mira outra vez a anomia familiar das classes emergentes, a fome do poder, o desejo desenfreado de ascensão social, a corrupção política dos parlamentares e dos empresários, a ação criminosa dos milicianos, a dissimulação dos evangélicos e seu projeto de enriquecimento, dominação e conquista do poder, o aliciamento dos menores pelos narcotraficantes, isto é, contempla grande parte das mazelas cariocas e nacionais.

A série primorosa foi criada por Lucas Paraizo e dirigida por Luisa Lima e Lara Carmo. E não se pode esquecer nessa construção o competente e sofisticado trabalho de roteiro, direção, fotografia e engenharia de som etc. Note-se o primor das trilhas sonoras que trazem o melhor da cena musical brasileira, além do uso da música clássica como coadjuvante na produção da obra. Enfim, cumpre situar a produção recente das séries brasileiras, que despontam exitosamente no mercado internacional da ficção audiovisual.