Está faltando sensatez no mundo do jornalismo brasileiro. Sensatez e muito mais. Falta reflexão aprofundada, falta cobertura equilibrada, sobra porém, apreço pela futilidade, pela não notícia, pelo que não contribui para a retroalimentação de uma opinião pública inteligente e capaz de compreender as graves turbulências vividas na América Latina e no mundo.
Antes, a pauta centralizada era a guerra entre Israel e Hamas. A partir do sábado, 18, todos os âncoras de tv partiram para a cobertura das eleições na Argentina. Javier Milei venceu e a mídia amplificou uma cobertura consonante, homogênea, em todos os veículos, trazendo para o centro da narrativa, um Milei “ultraliberal”, “anárquico/capitalista/libertário”.
Não sei o que esse epíteto significa. Também não sei se foi impressão minha, mas senti uma espécie de ruidosa alegria na mídia brasileira face à vitória do direitista. Desde o domingo 19, as análises superficiais do cenário ocupam espaços privilegiados nos programas jornalísticos de rádio e tv e nos portais. Os destaques são de fazer rir. As mulheres que cercam a vida de Milei, a extraordinária performance da namorada do presidente, em sua imitação de Cristina Kirchner, repetida até a exaustão pelos âncoras de tv, que elogiam o desempenho. e o tema mais insólito: Milei dialoga com o espírito do seu cachorro morto.
Nas primeiras repercussões das eleições argentinas no Brasil, a mídia agarrou-se à declaração do presidente Lula, feita em suas redes sociais. O destaque é apenas para o fato de Lula não haver mencionado o presidente eleito em sua manifestação, ou se haveria um telefonema ao novo presidente argentino.
As discussões aprofundadas só têm lugar na chamada mídia alternativa, na blogosfera e nas redes sociais de ativistas independentes. A mídia profissional passa ao largo dos grandes temas, se quisermos, da tendência que tem se estabelecido no mundo político mundial, cujas eleições têm sido comandadas por tecnocracias algorítmicas, milícias digitais comandadas por um pequeno número de indivíduos, empenhados em eleger presidentes apolíticos, ante estado, negacionistas e protagonistas de espetáculos grotescos, conforme está tão bem descrito na obra “Os Engenheiros do Caos”, por Giuliano Da Empuli.
Estamos vivendo o que o autor chama de “o novo populismo”, uma espécie de réplica do carnaval, onde, conforme ele diz,” Onde quer que seja, na Europa ou em outros continentes, o crescimento dos populismos tomou a forma de uma dança frenética que atropela e vira ao avesso todas as regras estabelecidas. Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites”.
A mídia brasileira, lamentavelmente, empenha-se em amplificar esse espetáculo grotesco, tal como fez durante o período nefasto de Jair Bolsonaro no poder, e repete agora a fórmula superficial e diversionista da cobertura da ascensão ao poder de Javier Milei. Conforme disse Da Empuli em seu livro, “…No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática”.
Na sua vertente sensacionalista, espetacular e diversional, a mídia brasileira passa ao largo do cenário trágico que atravessa o mundo. Mal nos livramos de Jair Bolsonaro, vemos o drama reproduzir-se na vizinha Argentina, amplificando uma tendência latino americana para uma agenda calcada no estado mínimo, no fim das políticas sociais, no negacionismo e na propagação de mentiras e fake News.
A tragédia passa ao largo da cobertura brasileira. Sim, não há dúvida de que há jornalistas eufóricos com o novo cenário argentino. Nessa galeria, um grande número de profissionais trabalhou ardorosamente pela prisão do presidente Lula, servindo mesmo como braço central da maior operação de lawfare empreendida através da lava jato. Profissionais que se empenharam pessoalmente pelo fracasso da Copa do Mundo em 2014, pelo impeachment da presidenta Dilma em 2016, e fizeram campanha aberta pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
A imprensa utiliza-se da velha estratégia de narrar os fatos como se não participasse dos mesmos, como se não estivesse presente, através de muitos dos seus profissionais, em terríveis capítulos que empurraram nosso país para um dos mais profundos retrocessos, com ameaças claras do fim da democracia e das instituições.
Sob o manto de concessões públicas, veículos de imprensa conspiram contra o governo Lula. A denúncia mais recente dá conta de que o jornal “O Estado de São Paulo”, a soldo de políticos e empresários ideologicamente identificados com o ex-presidente Jair Bolsonaro, empreende campanha conspiratória contra o ministro da justiça, e contra o próprio governo. Basta garimpar, na base de dados do jornal, a produção sistemática diária de editoriais e colunas propagando mentiras e fake News contra o governo.
Democratização da comunicação e das mídias: eis um tema inadiável que a imprensa brasileira nunca agendará, e ai daqueles que ousarem falar abertamente sobre isso. Serão considerados como verdadeira ameaça à liberdade de expressão e de imprensa, quando na verdade, esta mesma imprensa, muitas vezes, ameaça à democracia, a justiça social e o direito dos cidadãos, para os quais deveria ser porta-voz e defensora.
Joana Belarmino
Jornalista, mestra em Ciências Sociais, Doutora em Comunicação e Semiótica. professora titular colaboradora do Programa de Pós-graduação em jornalismo da UFPB,contista e membro do Clube do Conto da Paraíba.