
Esse texto foi embalado pela Liniker.
“Eu não imaginava te ver de novo/ Depois de tanto tempo”… Esses dias vivi uma experiência linda. Reencontrei meu primeiro grande amor. Daqueles amores adolescentes, inocentes e avassaladores. “Tipo amor pra recordar.”
Um amor que foi mágico, cheio de descobertas, de vontades e contenções, de desejos e vulcões. Reencontrá-lo foi como ver um filme antigo. Não tão antigo que não tivesse cor e áudio.
Havia um colorido próprio da memória, sons, tantas cenas reencaixadas numa sequência aleatória. Imagens dinâmicas, palatáveis, olfativas, sensíveis… Na nossa troca de olhares, antes do primeiro abraço, um amor genuíno, besta como só os primeiros amores são, atravessou-nos em forma de sorriso e brilho nos olhos.
Os primeiros toques, o nervosismo que os acompanhava, as delícias incontáveis, a imagem de seu corpo molhado durante o banho, o cheiro do sabonete, a primeira transa ao lado de sua moto, à luz das estrelas, depois de ter sido sequestrada… Sim, ele deveria ter ido me deixar em casa… Mas naquela noite éramos casa um do outro.
A textura de seus cabelos, o calor de sua pele, as inúmeras vezes em que dormimos tão próximos. O homem que reencontrei já foi o menino por quem meu coração se derretia. Por quem meu coração pulsava forte quando se aproximava de mim e em praça pública me colocava nos braços.
Menino com quem compartilhei tantos momentos, viagens, famílias (a minha e a dele, as nossas). Menino que me sabia menina, que me fazia mulher, amada, desejada, querida. Querer-me perto a maior parte do dia, parte de sua vida, perto dia e noite, maior chamego e cumplicidade.
Nosso reencontro, cheio de abraços e sorrisos e uma conversa comprida nos fez saber o que se tinha feito de nossas vidas desde que tomamos rumos distintos e nos perdemos. A vida faz dessas coisas: engavetamentos, perdas, extravios, abandonos, esquecimentos e reencontros (felizmente!)
Nunca o esqueci, por isso o mantive em um baú onde guardo as melhores memórias. Nosso reencontro: chave. Escancarou meu baú e de dentro saiu alegrias, cenas de como fazia “um escarcéu com seu sorriso”, almoços, encontros de jovens cristãos (eu fui uma jovem cristã), noitadas na pracinha da cidade com hora para retornarmos. Éramos adolescentes. E eu, sempre bem-vinda para dormir em sua casa, voltava com ele. Prolongávamos nosso encontro na pracinha em seu quarto.
Adormecíamos abraçados, massageando os cabelos um do outro. O meu, liso, fino e loiro; o dele crespo, cacheadinho e negro. Cuidávamos um do outro. Amigos, irmãos, amantes. Um colchão ao lado de sua cama pra me receber era nosso paraíso. “Enquanto você dorme/ Eu cheiro você/ Pra guardar na memória o tom/ Do meu veludo cor marrom, ai”. Era isso.
É isso: guardei seu cheiro, o tom e a textura de sua pele, a leveza com que tudo aconteceu, apesar dos medos. Guardei a amizade, a cumplicidade, o amor que só nós tínhamos noção do tamanho. Acredito que as pessoas de fora interpretavam de duas formas: com inocência (Não se desgrudam, são amigos demais!) ou com malícia (Muito estranho o grude desses dois!)
Nunca nos preocupamos com isso. O mundo não existia quando estávamos juntos. Nós éramos o mundo um do outro. E fomos autossuficientes até que o destino se encarregou de traçar caminhos tão distintos, tão distantes, tão diferentes para nós.
Ele seguiu o que o manual para meninos disse o que ele tinha que fazer. O meu, joguei fora, não me servia. Segui a Beauvoir, tornei-me mulher.
Esses dias essa mulher que agora escreve viveu uma experiência linda. Reencontrou o primeiro grande amor de sua vida. E ela se deu conta de que foi amada desde sempre, desde quando ainda estava sendo alicerçada. “Então o tempo parou/ Começou a chover/ Uma porta fechou/ Outra porta se abriu/ Fui correndo e achei/ Encontrei meu amor…”
Bia Crispim de Almeida é professora da rede pública do RN e do IFRN/Caicó, escritora, travesti e militante pró-LGBTQIAPN+. Doutoranda em Literatura Comparada (PPGEL/UFRN), é autora de No Horizonte Tem Chuva Fiando (CJA, 2022) e colunista desde 2020. Atua em coletivos feministas e trans, coordena clubes de leitura e palestra sobre literatura, educação e questões de gênero. Defensora da causa animal, é mãe de 13 gatos e dois cachorros.

MULHERIO DAS LETRAS
Coletivo literário feminista que reúne escritoras, editoras, ilustradoras, pesquisadoras e livreiras, entre outras mulheres ligadas à cadeia criativa e produtiva do livro, no Brasil e no exterior, a fim de dar visibilidade, questionar e ampliar a participação de mulheres no cenário literário.