Na moldura do estourado super oito, o rosto Jomard Muniz de Britto lembra o Bob Dylan da turnê Rolling Thunder Revue. O poeta usa um terno branco como um senhor de engenho, mas os olhos riscados a lápis de maquiagem.
O poeta tropicalista caminha por uma Recife não muito conhecida. Sua voz, em off, vai ribombando poemas de Maiakovski e, até onde percebi, com pequenas alterações. A escolha se dá pelos poemas mais conhecidos do público brasileiro, na tradução dos irmãos Campos e Boris Schnaiderman.
Há duas cenas antológicas.
Primeira: Jomard grita: “ressuscita-me, porque sou poeta. Ressuscita-me!”. Vemos Jomard de costas pichando o muro de uma casa abandonada. O áudio muda. A voz, inconfundível, é a de Glauber Rocha. “Boa noite presidente Geisel, o senhor fez muito por este país, espero que o senhor seja feliz e…”. A parede é preenchida com os dizeres: “Acorda Glauber/ eles/ enlouquerecam”, enquanto Glauber vai alinhavando um discurso em que tenha conjugar cristianismo e marxismo.
Segunda: de terno branco e chapéu, Jomard Muniz de Britto vai mergulhando gradualmente no mar do Recife até só lhe restar o chapéu na superfície.
O média metragem experimental é de 1983 e conta com direção de Paulo Cunha e de Geneton Moraes Neto, que ficou conhecido pelo grande público pelo seu trabalho como jornalista televisivo.
Localizei este filme no Youtube, no canal Fragmentes. Foi postado há 15 anos. Até o momento em que escrevo este texto, há 748 visualizações à parte inicial, superando as 517 da segunda e última.
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Quinta que vem estarei participando de uma conferência em homenagem aos 130 anos de Maiakovski.
Será Instituto de Literatura Mundial (IMLI) A.M. Górki, de Moscou.
Revisei antigas notas que fiz para a escrita da minha dissertação e que acabaram não sendo sequer mencionadas.
“Coração de cinema” é mais do que um testemunho do amor que Recife sempre devotou pela sétima arte, mas é uma pequena pedra de toque da vanguarda brasileira em cujo mesmo chão ou terreiro pisam e dançam Jomard Muniz de Brito, Geneton Moraes Neto e Vladimir Maiakovski.
Astier Basílio
É poeta, jornalista, tradutor e dramaturgo, autor de Maquinista, Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2014.