Quando eu era estudante universitário, costumava frequentar os concertos da orquestra sinfônica, que durante alguns anos teve o maestro Eleazar de Carvalho, desdobrado entre Nova Iorque e João Pessoa, como regente. Além dela, uma dezena de conjuntos formados pelos músicos da própria orquestra apresentavam recitais os mais diversos. Eram grupos que se juntavam para tocar música medieval, havia os quintetos de cordas e os de sopro, o mais famoso deles liderado por Radegundes Feitosa, havia grupos de musicas experimentais, um deles liderado por Didier Guigue, havia o Madrigal Paraíba, o coral magnifico liderado pelo maestro Pedro Santos, havia ainda Zé Ramalho em início de carreira, então chamado Zé Ramalho da Paraíba, com o seu grupo Os Quatro Loucos, havia Jarbas Mariz, Tadeu Mathias, Ivan Santos, Firmino na batera, Fuba, Bráulio Tavares que me encantava com a engenhosidade de sua poesia e um tanto ainda mais com a sua prosa, um trovador ao modo dos violeiros, e entre estes propriamente, e que me deixavam de queixo caído com a beleza da poesia e a rapidez de raciocínio, Oliveira de Panelas e Otacílio Batista, dois dos maiores repentistas que eu já vi improvisar, e um pouco mais pra frente, Elba Ramalho e Chico César, que chegou ainda quase menino para se juntar a Pedro Osmar e ao movimento por ele liderado, o Jaguaribe Carne.

Relembro isto para dizer que o movimento musical da Paraíba sempre me seduziu pela  sua diversidade e pela qualidade dos seus artistas. Reputo, posso talvez estar errado, a multiplicidade de estilos à presença da orquestra sinfônica, que trouxe algumas dezenas de músicos os mais talentosos, que além de tudo ainda davam aulas no curso de música da Universidade Federal da Paraíba. Muitos dos músicos dos quais me recordo mantinham carreira solo, enfrentando com bravura a dureza de ser artista independente. Curiosamente, não havia muitas mulheres em carreira solo, embora muitas estivessem dentro dos grupos. Em minha lembrança, salvo a já então consagradíssima Marinês, de Campina Grande, recordo apenas de Gracinha Teles cantando e encantando nos bares da cidade e brevemente, porque se foi para a Alemanha, Regina Brown.

Mas já faz algum tempo que eu tenho visto que aquilo que já era grande quando eu ainda pequeno, está muito mais ampliado em quantidade, qualidade e estilo. E recheado de mulheres maravilhosas. Pra não ser injusto com elas – e são muitas – vou falar apenas das que eu vi cantando neste dias de carnaval.

Polyana Resende, a nossa rainha do samba. Polyana, do meu ponto de vista, é uma das maiores sambistas deste país. Sempre me pareceu que Polyana se inspira em Clara Nunes, o que é uma referência das mais significativas. Mas para além disso, Polyana compõe e as suas músicas são um canto às raízes míticas de nossa origem indígena e preta, como você pode conferir ouvindo o álbum, nas plataformas digitais, Samba Teimoso. E como não poderia deixar de ser, a performance de palco de Polyana Resende é de encher os olhos. E se você quiser saber quem é Polyana Resende, ouça-a cantar, no dito álbum, a canção Primeiro Samba, na qual a artista revela os seus lastros musicais, e de onde vem o seu samba tão brasileiro, tão paraibano, “um samba que vem das fumaças dos cigarros nas madrugadas, e que insiste em nascer onde o amor não cresce. Polyana tem um projeto chamado Sanhauá Samba Clube, no qual ela e Potyzinho Lucena e mais um grupo de sambista de primeira grandeza tocam e cantam todas as segundas-feiras no bar Vila do Porto, no centrão histórico, sambas clássicos e autorais.

Menos conhecida do grande público, Mayra Montenegro fez uma brilhante participação no bloco Raparigas de Chico. Mayra tem carreira profissional como acadêmica, é fundadora da Companhia Violeta de Teatro, e claro, atriz e professora de canto na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mayra é uma excelente atriz, autora de um lindo espetáculo, Violetas, que eu penso inspirou muitas outras atrizes a criarem solos como autodramaturgia. Mayra Montenegro cantando as canções de Chico Buarque alia a cantora requintada que ela é a atriz de igual quilate que também ela é, de modo que a sua performance no palco faz o público enxergar as personagens de Chico, sobretudo as femininas, que Mayra interpreta com muita verdade e beleza. Nesse sentido, Mayra se destaca bastante, do modo onde eu a enxergo, no sentido da interpretação, porque o público vê ao mesmo tempo a cantora e a atriz, ambas discretas, ambas presentes, uma e a outra sendo a mesma coisa, representando a cena que ela canta.

Por fim, Myra Maia. Se há uma cantora eclética na cena musical paraibana, esta é Myra Maia, cujo repertório vai de forró ao samba, ao funk, ao beat eletrônico, ao pop, ao frevo, de modo que você não pode enquadrar Myra Maia em nenhuma estética específica, porque ela é de todas as ondas todo o tempo, como ela mesma canta no single Na Cama, há várias em mim mesma. Myra está na batalha há muitos anos, e eu tenho a impressão de que o seu ecletismo faz com que, por dificuldade em colocá-la em algum quadro, ela não seja vista na dimensão que tem, a de uma cantora e compositora múltipla e com um projeto bastante consistente, agora denominado Myra no Rolê, e que ocupou o centro histórico, num esforço pessoal para criar o carnaval durante o carnaval, reanimando o velho centro, que vive em estado de permanente quase abandono. Myra no Rolê é Myra Maia macetando o descaso público com uma área que muito contribuiria com a cultura e o turismo ali onde a cidade nasceu há mais de quatrocentos anos. Mas é também um projeto estético e profissional, no qual Myra usa de sua vasta experiência de cantora em trios elétricos e, não poderia deixar de ser, eletriza a plateia por tanto tempo que eu fiquei a me perguntar algumas vezes, enquanto a via no palco, que horas ela pretende parar. Myra Maia é um furacão incansável com o seu show profissionalíssimo.

Quando o carnaval chegou, eu e Suzy pretendíamos ficar em casa, curtir praia, descansar. Mas foram tantos chamados, tantos convites, inclusive um que muito nos encantou, o de desfilarmos no grupo de maracatu Maracastelo durante o carnaval tradição. Foi lindo. Ficamos muito agradecidos. Mas eu gostaria de dizer uma coisa pro pessoal da Funjope: no próximo ano, pense na iluminação como algo fundamental, tanto nos palcos dos shows quanto na avenida. Sem luz adequada não há beleza que se mantenha, e esse foi um quesito falho em tudo o que eu vi. Veja a foto que ilustra esta crônica. Pouca luz no desfile dos grupos e o fundo da avenida completamente escuro. A pouca luz que há é mais adequada para um jardim ou um quintal.  Só para lembrar de Chico Buarque, na canção Vida: luz, quero luz, sei que além das cortinas são palcos azuis. Luz e paz para o ano que começa clamando por justiça contra aqueles que por quatro anos quase nos levaram às trevas de onde eles saíram.