Foto: Edson Lopes Jr.

Você já viu o pôr do sol na praia de Jacaré, em Cabedelo, na Paraíba? Se não, aceite uma sugestão: vá ver. O que você vai encontrar de tão magnifico ali?  Bem, além de um sol lindo que vai se deitando lentamente, você vai ouvir Jurandir do Sax tocando o Bolero, de Ravel, com o instrumento que de tão seu terminou por se integrar ao próprio nome do artista. Àqueles que são mais reservados, talvez a experiência soe como propaganda de empresa de turismo, já que o local está abarrotado de turistas. Mas esqueça isto, abstraia-se, se possível, da multidão e concentre-se em ouvir – e ver – Jurandir embalando o sono do sol com o bolero que ele toca há, sei lá, vinte ou mais anos, em pé em sua canoa, no meio do rio Sanhauá, enquanto a luz vai esmaecendo no horizonte. Trata-se de um espetáculo proporcionado pela natureza e integrado à vida do próprio Jurandir, que, conta-se, um belo dia teve a vontade de entrar para o livro dos recordes como o cara que mais tocou o Bolero no mundo. Deve de ter entrado, não sei, não fui procurar para saber, até porque esse sentimento de ser o maior em qualquer coisa não me atrai, não me interessa. Mas esse, embora seja um feito, não é o maior. O maior mesmo, e o que me chama a atenção, é o poder que um artista, munido do seu instrumento e uma boa dose de loucura – do contrário nada rolaria – tem para mudar o mundo. Ao contemplar o pôr do sol sob a melodia encantadora de Ravel tocada por Jurandir em seu sax no meio do rio, o que você estará contemplando é a criação de um movimento onde antes de Jurandir nada havia, a não ser a natureza em sua faina diária e eterna. Ponto. Era bonita antes de Jurandir? Sim, era. Mas foi o artista quem moldou àquela paisagem. Antes de Jurandir chegar com a sua canoa e o seu sax, alguns gatos pingados se deslocavam para a beira do rio para acender o seu baseado contemplando o espetáculo de cores que o nosso astro proporciona. Depois, ia-se ao Jacaré para ver o pôr do sol, acender o baseado e ouvir a melodia que enche a paisagem de uma suave melancolia, parecendo até que uma coisa está naturalmente integrada à outra, o sol e o som, a luz e o sax, compondo uma experiência que tem algo de mística ou transcendente, e que somente assim o é porque Jurandir assim o fez. Sim, depois vieram as empresas de turismo, os governos, e todos se aproveitaram do espetáculo gratuito que o sol e o sax compõem e transformaram o local antes bucólico num amontoado de gente em meio a uma feira de produtos artesanais, a grana ocupando o lugar da poesia, alterando a beleza do lugar, ressignificando o que antes tocava a alma para o que agora toca os bolsos. Nada contra. Até porque arte é ofício, e o artista necessita de público que lhe garanta a sobrevivência. Ao mesmo tempo, eu penso em como a arte movimentou uma economia que hoje é chamada de criativa. O poder da arte para mudar e transformar realidades. A indústria da arte, algo que em nosso país soa quase como um crime, e o artista que é quem movimenta uma indústria que emprega mais do que montadoras de automóveis, não raro é um pária. Nem vou tocar na ideologia retrógrada que inferniza as nossas vidas desde quando a pandemia moral, esse vírus que é uma soma de ignorância histórica com fé bíblica e estupidez astronômica assumiu o centro da política e por sua ação demonizou a arte e os artistas. O poder da arte fez com que uma comunidade carente próximo ao Jacaré encontrasse uma forma de escapar da miséria, quando entendeu que poderia oferecer serviço a tanta gente que procurava aquele lugar, àquela hora, para – em tese – viver uma experiência única, metafísica. Isso ainda é possível, não em sua totalidade como antes da multidão chegar, mas se você se concentrar em Jurandir, boiando nas águas do histórico rio, se você conseguir se alienar dos badulaques oferecidos nas barracas, se você se elevar acima das vozes que não entendem que o momento é de silêncio e de contemplação à moda de oração, se você apenas ver o sol, Jurandir, o som e o sax, você será tocado pela beleza que penetra em camadas profundas de sua sensibilidade, proporcionando um retorno de você para você, caso você queira falar com o deus residual que há em você.