De que tempo são feitos os hi(ato)s de nossas vidas? E para que eles nos servem? Para guardar memórias? Para esquecê-las? Ou para nos surpreender numa curva qualquer em algum momento de nossas caminhadas?

Ontem encontrei um grande amor que tive por volta dos meus 20 aninhos. Nosso último encontro fora em um ambiente acadêmico, há 7 anos, na UERJ.

Porém, na noite passada, foi uma surpresa. Dessas que nos deparamos nas curvas da vida. Surpresa para ambos, o que ainda deixa esses momentos mais deliciosos. Na hora, nossos olhos faiscaram na encruzilhada. A felicidade estampou-se em nossos rostos. E arquivos, daqueles que a memória guarda numa pasta, dessas que por algum motivo a perdemos, escancararam-se.

Eram arquivos demais. Com áudios, imagens, pequenos vídeos, cheiros, toques, frio na espinha, viagens, estreia, teatro… Lembranças que foram sendo resgatadas, que estão sendo resgatadas até agora.

Ele lembrava ainda de um menino que chegava na universidade de patins: – Excitante demais, disse diante das pessoas que testemunhavam o encontro. Fala que me deixou ruborizada – ainda me julgo tímida para certos comentários.

Menino aquele que, “performando” Cântico Negro de José Régio, poeta português, atraiu pela primeira vez os olhares e os desejos daquele Quixote. Paixão imediata. Fogo em palha. Durou o tempo de uma eternidade.

No encontro surpresa, e ainda enquanto partilhávamos um café da manhã com os nossos amigos em comum, na manhã seguinte ao encontro noturno, havia uma conversa que só nós entendíamos, que só nossas trocas de olhares eram capazes de decodificar.

O menino de patins, que mais tarde transformar-se-ia em uma Dulcinéa, convidava, há 27 anos:

Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces/ Estendendo-me os braços, e seguros/ De que seria bom que eu os ouvisse/ Quando me dizem: “vem por aqui!”.

Mas foi esse menino que acabou acompanhando os olhos doces e os braços estendidos e seguros que diziam que aquela aventura seria boa, e foi junto com seu Quixote em busca de aventuras.

 

Pausa para o primeiro hi(ato).

20 anos depois, Rio de Janeiro, 2017. A UERJ foi palco. Na hostilidade da academia, o amor ressurgiu em forma de admiração, profundo respeito e de arquivos abertos pela primeira vez. Encontro rápido. “Long time no see!”

Houve ali um resgate de uma época outra. Apenas flashs. Não havia mais aquele menino, só existia Dulcinéa, sem patins. O Quixote quase não a reconheceu. E tudo não passou de relâmpagos na mente de ambos, acredito.

 

Pausa para o segundo hi(ato).

Chegamos à noite de ontem. A noite da surpresa. 7 anos depois do encontro do Rio. Ambiente fraterno. Noite de festividades, drinks e reunião de pessoas que se querem perto.

Noite que prometeu um dia. Uma pequena pausa, um hi(ato) de um sono. E que pariu novo encontro ao amanhecer. Um café partilhado, uma conversa estendida.

Pensando nessas cenas todas, me pego pensativa sobre o porquê dos hi(ato)s existirem. O porquê de nos perdemos de outras pessoas, inclusive daquelas as quais nos marcaram, nos marcam, tanto.

E volto para o começo dessa conversa me fazendo as mesmas perguntas: “De que tempo são feitos os hi(ato)s de nossas vidas? E para que eles nos servem? Para guardar memórias? Para esquecê-las? Ou para nos surpreender numa curva qualquer em algum momento de nossas caminhadas?”

Talvez os hi(ato)s existam para que saibamos que amores são eternos por quesão amores (já escrevi isso em um poema) e tempo nenhum apaga a beleza que um dia eles nos deram. Tipo esse amor entre a Dulcinéa e seu eterno Quixote. Talvez os hi(ato)s existam como uma espécie de “fechar de cortinas”, para que atores e atrizes se preparem para o surpreendente ato seguinte.

 

Bia Crispim de Almeida é professora efetiva da rede pública do estado do RN e substituta do IFRN/ Caicó. Mãe de 13 gatos e dois cachorros) é defensora da causa animal.
Graduada em Letras/Português (UFRN); Especialista em Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira (FELCS/UFRN); Mestra e doutoranda em Literatura Comparada na área das Poéticas da Modernidade e Pós-modernidade (PPGEL/UFRN); Escritora (autora do livro No Horizonte Tem Chuva Fiando – Editora CJA – 2022), participante de diversas coletâneas; e desde 2020 escreve semanalmente colunas para portais de notícias locais.
Travesti e militante pró-LGBTQIAPN+, principalmente quanto às demandas da comunidade Trans/Travesti, é Transfeminista e feminista vinculada aos grupos ATREVIDA/RN, Coletivo Chá das Marias – Parelhas/RN e Mulherio das Letras Zila Mamede/RN.
Coordena e participa de grupos de leitura como o PaRoLei – Parelhas; Mulheres Lendo Mulheres do Mulherio Zila Mamede – Natal; Clube TAG Currais Novos; e Clube de Leitura da FELCS/ Currais Novos.
Como palestrante discursa sobre literatura, educação, discurso de ódio e questões de gênero dentro e fora do ambiente escolar.
biacrispim2003@gmail.com
@bia_crispim