Desde que minha família foi obrigada a mudar de religião e frequentar os cultos evangélicos na comunidade, entrei numa espécie de masmorra emocional.

Na escola, erámos submetidos à disciplina de educação religiosa, mas o meu professor era adepto da laicidade e nos ensinava a valorizar as nossas raízes afro-brasileiras, mas foi expulso e nunca mais soubemos dele. Sempre tive dificuldade em entender que Deus pai e Deus filho são apenas um, que o filho é consubstancial ao seu pai e o pai é consubstancial ao seu filho. 

Sou de uma família de seis irmãos. Rebelde à disciplina imposta por um pai alcoólatra, era punida sempre que retornava da casa de Pai Joaquim de Aruanda. Da última vez que tentou me violentar, lanhei o rosto dele e deixei lascas de unhas vermelhas nas cavidades rugosas de seu rosto.  “Ovelha negra, possuída pelo diabo”, diziam.  Fui parar nas mãos de um pastor evangélico. O virtuoso neopentecostal, desejoso de obter êxito na conversão religiosa, satisfeito de poder facilitar a nova discípula todo aquele mistério que um dia poderia me fazer uma mulher de bem, pôs em prática um procedimento para clarear as minhas dúvidas. 

Num quarto com cheiro de bebida, tabaco e O Velho Evangelho sobre um chicote de couro disposto num criado mudo, o homem estava disposto a me comprovar a existência da misteriosa Santa Trindade. Após me imobilizar com o chicote, fui estuprada por ele.  Agarrando raivosamente meu corpo, lembrei também da lascívia e do bafo pachorrento do meu pai.

O bêbado estuprador adormecido me ensinou tudo de uma vez sobre o mistério da Trindade.

Num gesto de gratidão, levantei recalcitrante, flagelada,  e com ajuda de meus olhos de Társios derramei todo o álcool das garrafas e mais aquele  a 70º, usado para assepsiar nossas feridas. Acendi o isqueiro nas franjas da igreja do diabo e fui embora.

A ardência das  labaredas não se compara ao pôr do sol na minha face de Xangô, mesmo aqui onde a liberdade não me alcança.

 

Por Isa Corgosinho