Você já ouviu falar em Eva Nil? Tudo bem, eu também não sabia de quem se tratava até o dia em que fui visitar o seu memorial, em Cataguases, Minas Gerais. Eva Nil é uma espécie de Peter Gast do cinema brasileiro. Aquela que ficou famosa pelos filmes que ninguém assistiu. Dona do nariz “mais-que-perfeito”, a atriz nasceu no Egito, filha de italianos, veio com os pais para o Brasil quando contava com cerca de cinco anos de idade, e na adolescência então foi a estrela máxima dos dois primeiros filmes dirigidos por Humberto Mauro e fotografados por Pedro Comello, o pai da moça rebelde. Os filmes são o curta-metragem “Valadião, o Cratera”, de 1925 e o longa-metragem “Na Primavera da Vida”, de 1926. Além desses dois filmes realizados pelo pai do cinema brasileiro, Eva Nil atuou ainda no filme realizado por Pedro Comello: “Senhorita Agora Mesmo”, de 1928. Depois, em 1929, faria o seu último filme, “Barro Humano”, sob a direção de Adhemar Gonzaga, produzido pelo grupo Cinearte, no Rio de Janeiro, cuja revista do mesmo nome era editada pelo próprio Adhemar Gonzaga e pelo crítico Pedro Lima, semanário esse que na década de vinte tornou-se o principal meio de divulgação do cinema brasileiro, e onde Eva Nil foi por duas vezes capa. Afora fotogramas esparsos, nenhum desses filmes existe mais, e ao que se comenta, nem mesmo comercialmente eles chegaram a ser exibidos, a não ser em algumas telas em Cataguases e cidades vizinhas. Mas o filme que fizera com o pai, “Senhorita Agora Mesmo” ainda chegou a ser exibido no Cine Glória, do Rio de Janeiro. Depois disso, Eva Nil evanesceu das telas, tornando-se como atriz uma Eva nihil, um nada poético como a música que ninguém nunca ouviu de Peter Gast, obscurecida por um lento fade-in. Consta que a egípcia, filha de italianos, ganhara na juventude uma beleza de inconfundível brasilidade, um corpo de extrema delicadeza, mas dotado de grande vitalidade. Era uma enérgica senhorita capaz de grandes rompantes, tipo quando abandonou a filmagem de “Tesouro Perdido”, de 1927, filme de Humberto Mauro e fotografado por Pedro Comello. O que se esperava, segundo Paulo Emilio Salles Gomes, era que a moça voltasse a ocupar sua posição de estrela depois de acalmados os ânimos, mas isso não aconteceu. Eva Nil queria ela mesma produzir os seus filmes, e apesar do seu caráter forte escondido na graça frágil, não conseguiu.

O que aconteceu com Eva Nil é algo semelhante, guardando as devidas proporções, do que aconteceu com Anayde Beiriz. Falo sobre a artista que elas foram. Ambas jovens, belas e rebeldes. Ambas tiveram as suas obras apagadas, ou quase isso. Se esse apagamento foi intencional ou fruto do descaso com que nós, brasileiros, tratamos as nossas memórias é assunto a ser explorado pelos exegetas, mas não deixa de ser curioso que vidas femininas na década de vinte do século vinte tenham tangenciado o mesmo ponto. Descaso ou desmemória, ambas as situações refletem o pouco caso com que se trata a produção cultural deste país. E quando acontece de a voz silenciada ser a feminina, então esse abismo se amplia para algo muito além do que é tópico, apontando para algo que é estrutural, portanto ainda mais profundo e significativo do que uma simples desmemória. Estamos, ao menos é o que eu espero, atravessando um portal para um novo tempo, para o século vinte e um que traz ainda consigo os resquícios do conservadorismo destruidor da vitalidade, da energia deste povo que, uma vez falou Paulo Pontes, de tão fantástico e criativo é capaz da fazer da miséria samba. Este povo que será grande, depois que os ratos que emergiram do esgoto moral desta nação juntamente com o último presidente forem postos dentro de ratoeiras. E não falo em eliminá-los pela força ou pela violência, mas pela arte, pela cultura, pela educação, que fará com que vozes dissonantes soem como a música de Peter Gast, aquela que não se ouve mas se percebe a intensidade de sua melodia. Tu vens, escreveu o profeta Alceu Valença, eu já escuto os teus sinais. E vem de toda parte: vem dos pretos, dos indígenas, das mulheres e dos brancos que recusam o passado como modelo social.

Eva Nil, Anayde Beiriz e quantas outras artistas foram apagadas da história são hoje as vozes das mulheres, das bichas e adolescentes que fazem o carnaval, invertendo os valores com que a tradição nos criou, trazendo à tona os seus próprios discursos, revelando a imagem que Eva Nil não fez, reescrevendo a história que Anayde não escreveu, cantando a canção que Peter Gast não compôs. Quem sabe faz agora.