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No próximo ano vai ter Copa do Mundo e, como alguns poucos brasileiros – raríssimos, aliás! –, chega-me a vez de gostar de futebol. É isso. São quatro anos de espera para gostar de futebol.

No Brasil, homens foram preparados para amar esse esporte. Por conta disso, passei muito tempo sentindo vergonha de afirmar o contrário. Muitas vezes era exceção numa roda de amigos, falavam dessa ou daquela partida e, ali calado, achando a conversa um saco, só abria a boca quando me pediam uma opinião, do tipo assim:

– Você concorda comigo? Você acha que aquele gol de bicicleta foi planejado ou casual?

A princípio, pensava que gol de bicicleta era um jogador pedalando no gramado: tirava o pé do pedal e chutava uma bola que ia parar no fundo da rede. Pensava isso, mas também tinha a consciência de que estava imaginando coisas. Recolhido à minha ignorância, mas sentindo-me obrigado a dizer algo, tentava escapar assim:

– Acho que aquele jogador é muito bom, mesmo…

Outras vezes, tentando me safar, cometi várias gafes, até decidir que chegara a hora de expressar a verdade: “Se não quiserem ouvir besteira, não me perguntem nada sobre futebol.”

Percebi que o efeito funcionou melhor. E, a partir de então, perdi a vergonha de não gostar do esporte.

Jamais esqueço de uma imagem minha, tão ridícula, na copa de 1982. Imaginem um adolescente de 16 anos, sozinho, sentado no banco de uma praça deserta e lendo as páginas do romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, enquanto o Brasil inteiro assistia uma partida da Seleção Brasileira. Era um tempo em que vivia encharcado de literatura, lia um romance atrás do outro, tinha acabado de abandonar os estudos só para ter tempo de ler romances. Nada mais interessava no mundo que não fosse literatura. E enquanto todos aguardavam por aquele jogo tão decisivo, eu tinha dito aos colegas:

– Enquanto vocês perdem tempo com coisa tão sem futuro, eu vou aproveitar para ler.

Era a chatice em pessoa, o cúmulo da arrogância. Foi preciso ver os fogos pipocando no céu, e a euforia do bairro após o primeiro gol, para fechar o livro de Flaubert e pensar comigo: “Meu Deus, estou sendo ridículo”. Corri para a frente da televisão e, partir desse dia, passei a gostar de futebol de quatro em quatro anos, e sempre torcendo pela Seleção Brasileira de igual para igual.

Mas a indiferença com o futebol talvez tenha a ver com um fato bem mais distante. Certa vez, ainda garoto, cheguei a ser técnico de um time… E aí o meu vizinho pergunta, com toda razão:

– Se você não entende de futebol, como chegou a ser técnico?

Digo para ele que, naquele tempo, entre os times de rua, técnico não era sinônimo de treinador, mas o dono das camisas. Eu comprei o padrão e, por causa disso, ganhei status de técnico. Tinha reuniões, conversava com a equipe, planejava estratégias para vencer o adversário e dizia aos jogadores:

– Quando vocês verem a bola, corram atrás dela.

Havia comprado doze camisas do Palmeiras. E, ainda hoje, escuto ecos da repercussão das partidas:

– O Flamengo de Eduardo, lá da Rua da Brasília, vai jogar domingo com o Palmeiras de Tarcísio, lá da Rua João Pessoa.

Comprara as camisas sem nenhum tostão furado. O Palmeiras tinha pertencido ao filho do chefe da Estação Ferroviária, que estava tentando vender o seu time depois de amargar sucessivas derrotas. Ninguém queria comprar aquele Palmeiras, pois a sua fama não era das boas. Um dia ele apareceu na nossa rua e, diante de todos nós, ofereceu o seu padrão por preço bem irrisório. Sem entender de futebol, eu escutava as barganhas sem nenhum interesse, mas tinha vontade de ser o líder da rua e encontrei naquilo uma boa chance.

– Você vende fiado? – perguntei.

O filho do chefe da Estação me vendeu as camisas para receber o dinheiro depois de uma semana. A princípio relutou um pouco, mas os moleques o incentivaram e ele acabou confiando, pois o meu irmão trabalhava na Farmácia Queiroga e isso me dava uma certa importância.

– Se você não pagar – disse ele – eu vou cobrar do seu irmão, lá na Farmácia Queiroga.

E foi o que fez. A primeira grande dívida e o maior calote que cometi na vida. Na verdade, antes de procurar o meu irmão, ainda negociei com ele uns três prazos, e enquanto isso o time ia jogando e perdendo para as piores equipes, os garotos correndo atrás da bola e eu gritando na beira do campo, num desespero:

– Chuta a bola, Coquinho; olha a bola aí, Ribamar; deixa de ser burro, Pantico; não tá vendo a bola não? Faça um gol pelo amor de Deus, faça…

O balconista da Farmácia Queiroga chegou em casa zangado:

– Que história é essa de um time de futebol, que você comprou para eu pagar?

– Não foi para você pagar. Não tenho culpa se ele foi cobrar na farmácia.

– Me dê esse padrão agora, depressa!

Saí recolhendo todas as camisas nas casas dos jogadores. Como estavam sujas, ainda me dei ao trabalho de lavar todas. Meu irmão as levou pessoalmente e entregou ao chefe da Estação Ferroviária, pai do credor que estava infernizando a minha vida, me procurando pelas esquinas, querendo acertar as contas.

Durante muitos dias andei me escondendo daquele menino. Isolei-me da turma e não saía de casa à noite, não sei se por vergonha ou medo de uma briga. Um dia tive um alívio, ao saber que o chefe da Estação tinha sido transferido para trabalhar na cidade de Sousa. Ele foi embora e levou a família num caminhão de mudança. Fiquei assistindo de longe, e dei meu grito de liberdade quando vi o caminhão dobrar a esquina da rua, atingir a BR e se mandar do meu mundo…

Por esta razão, talvez, eu preferi ler o livro de Gustave Flaubert durante a partida da Seleção Brasileira.