Sábado passado assisti Violetas, no Teatro Paulo Pontes. Ainda não sei o que dizer, mas sei que preciso. Preciso falar de um espetáculo que destrava gatilhos sensoriais emnossas memórias

Aqui e ali rimos em uma ou outra cena. Em momentos incertos e de dor indefinida, inexplicavelmente, sorrimos.Mas, choramos, também. O espetáculo vai revirando nossas emoções como um vulcão espalha suas lavas.

O tempo inteiro a nossa dor comum se mostra escancarada. É nossa nudez absoluta batendo tambores. Todos os silêncios do mundo e essa alegre insuficiência de existir sobem ao palco. Diga-se de passagem, muito bem-vestidos cenicamente pela atriz Mayra Montenegro.

O teatro faz rir e faz chorar. Possui uma simbologiaprofundamente humana. É uma simbiose da alegria e da tristeza que atravessa os palcos e escreve a história viva do mundo. Parece máscara, mas é o nosso rosto coberto de breves eternidades. O teatro necessário é esse que faz rir e chorar na mesma cena.

Violetas me lembrou um pouco de Hanna Arendt em A condição humana. Especialmente nos primeiros capítulos quando ela diz que “a condição humana compreende mais que as condições sob as quais a vida foi dada (…). No palco de Mayra e no livro de Hanna, o cerco dos totalitarismos e suas verves desossadas trafegam pelas tradições e costumes dos povos.

Compreendemos que o tempo é sempre tão breve, mas os seus silêncios brotam de forma cada vez mais farta. Recentemente publicaram os poemas de Hanna Arendt e ela diz: “Atrás dos muitos montes acena-me o calmo/ o amplo/ E o longe irrompe, brilhando como a lua/ na noite”. Enfim, o infinito é feito de brevidades.

Devemos chamar de monólogo o que a artista traz para o palco. Todavia, como Marilena Ansaldi interpretando “Escuta Zé Ninguém”, Mayra se multiplica em cena. Transita com sua voz soberana num diálogo (olho no olho)com a plateia. Da primeira até a última cena o ritmo estrutura a narrativa.

Sem segredos, ela vai despindo o corpo balofo do machismo institucional, da misoginia e até mesmo dos gritos silenciados que escondem o feminicídio. A subjetividade humana cumpre neste espetáculo as suas mais severas revelações. Em cada cena está posta a rebeldia necessária de existir.

O que é íntimo e o que é absolutamente impessoal se interpenetram o tempo todo. Por exemplo, na forma quase esotérica como a atriz serve chá para a plateia. Também, nessa memória remexida onde o que é individual e o que é coletivo rebentam. Como Brumadinho, é o fluxo de uma devastação que não nos permite a reconstrução do momento anterior.

A relação intensa de uma pessoa com a arte é o que traz Wilma para a cena. Uma relação amorosa, artística, mas também geracional e política. Somente um espetáculoassim pode definir a história de uma avó, de uma mãe, deuma mulher e suas plenitudes sufocadas.

Mayra Montenegro, no palco do Teatro Paulo Pontes, nos contou a história da sua avó. Num verdadeiro artesanatodramatúrgico, soube extrair de uma biografia comum, a complexa memória coletiva. Há um olhar agudo acerca das subtrações de Wilma, a avó, mas o espetáculo também revela as percepções de Mayra, a neta.

A cena que me arrebatou traz a menina Mayra, aos nove anos e a avó Wilma naquele mesmo teatro Paulo Pontes,para um espetáculo de Bibi Ferreira. Coincidentemente eu também estava lá. Quando terminou e o público aplaudia de pé, Wilma permanecia sentada.

Perguntada acercada sua atitude, respondeu: “esses aplausos são meus.”