Sim, eu fico deleitada escutando as cenas do cotidiano. No meu prédio, ouço a vida acontecendo em arrastar de móveis, batidas de panelas, louças entrechocando-se, risadas, bocejos, espirros.
Deleito-me com os carros de passeio, os ônibus grandes, que sempre me trazem a lembrança de uma noite longínqua em que viajávamos num ônibus grande e eu adormeci com a cabeça no colo do meu irmão Belar.
Outro dia escutei uma criança pequena chorando. Era um chorinho que não convencia ninguém. Chorinho de birra? De sono incompleto? Fiquei feliz só por saber que aquele chorinho seria atendido com abraços, beijos, carinho, que é tudo do que uma criança pequena precisa.
A música do cotidiano é bela porque simples, de uma simplicidade improvisada, rica, múltipla. A música do cotidiano fala de um mundo que flui, vibra, acontece como deve ser. Ou tudo não passa de uma ilusão de escuta?
O choro daquela criancinha pequena trouxe-me à memória a infância das minhas filhas, seus choros de zanga, de fome, seus chorinhos indecifráveis, que a gente colocava no cardápio da birra.
Desejei escutar muitas outras vezes o chorinho de birra daquela criança, ou mesmo os seus balbucios e gritinhos felizes. Enquanto aquela criança chorar e sorrir assim, eu pensava, o mundo estará bem.
Quantas crianças têm o direito a um lar seguro e protegido? Quantas crianças não estão ameaçadas somente por transpor a porta da sua casa, para brincar na rua, comprar uma bala, passear com sua avó?
Quantas crianças pequenas, dentro de suas próprias casas, só conseguem chorar o choro do abandono, da tortura, da violência que tantas vezes as silencia?
É sempre assim, a minha escuta do cotidiano, uma espécie de cenário dos contos de Edgar Allan Poe. A cena inicial é tão bonita. A paz experimentada é tão deleitosa. Mas logo o pensamento, este ser tão irrequieto, se põe a rumorejar suas ironias, seu ceticismo, sua mágoa, suas sombras, suas sonoridades perversas. Dou pause na minha play list de mundo feliz, Cerro a pequena franja do deleite e caminho para a realidade, grossa, tirânica, aterradora.
Salto com desespero por entre janelas estatísticas: Violência doméstica, abuso sexual, pedofilia, abandono, tortura, morte. As cifras são estratosféricas.
As notícias da mídia são terríveis. A morte trabalha fácil no terreno da infância, muitas vezes com a ajuda direta de pais, parentes outros, sem falar na caça grossa que a morte engendra com a maior tranquilidade, nas guerras do tráfico, do trânsito, nas guerras das periferias, onde tantas balas perdidas hospedam-se nos pequenos corpos infantis.
Pois bem, a música do mundo agora é cacofônica, dissonante, com notas secas de estampidos, pancadas, silêncios de choro e de respirar.
Como acabar essa crônica? Quero abraçar minhas crianças. Quero abraçar intimamente criancinhas pequenas que choram e sorriem ao mesmo tempo.
Quero sonhar com um mundo onde as crianças possam viver plenamente a sua infância, um mundo regado com ternura, educação, saúde, estrepolias, crescimento saudável. Se todo mundo sonhar junto, será que a gente consegue escutar a música desse mundo feliz?
Joana Belarmino
Jornalista, mestra em Ciências Sociais, Doutora em Comunicação e Semiótica. professora titular colaboradora do Programa de Pós-graduação em jornalismo da UFPB,contista e membro do Clube do Conto da Paraíba.